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quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Espelhos

A primeira vez que isto me aconteceu foi quando decidi não procrastinar e perante o primeiro aviso de pouca gasolina no meu humilde carrinho e antes que se tornasse num grito vermelho rumei resoluta à bomba de gasolina. Depois dos trâmites costumeiros uma cara masculina abriu um sorriso largo não sem antes cumprimentar em tom brincalhão Olá Senhora Professora. O rosto já com cãs e longe de ter a frescura adolescente era-me completamente desconhecido. Nada. Nem uma expressão, nem sequer o sorriso ou a expressão do olhar que resiste à passagem do tempo. Um rosto que me reclamava como sua professora, vinte anos já decorridos, e que provava conhecer-me e reconhecer-me duas décadas depois de lhe ter preenchido horas com um linguajar estrangeiro e eu perante ele desastrada, quem sabe com cara de velha patética de boca ao lado e olhar arregalado. E percorria a minha memória, cavalgava anos na procura daquele rosto, e tentei, quase em vão, lembrar-me. Localizei o ano como quem procura o carro perdido no estacionamento, Ah então estás aí, encontrei a turma seleccionando-a como se escolhesse a única chave capaz de me devolver o rosto do molho caótico no fundo da mala. Não mais do que isso, porém.
A segunda vez que isto me aconteceu saía lampeira da mesa de voto, quando alguém me interpelou por causa das sondagens. Enquanto se procuravam canetas e ajeitavam boletins eu disse que era professora. Um rosto de mulher carcomido pelo tempo olhou-me nos olhos É professora e filha de professora. A partir daí entabulou-se conversa, que a minha mãe tinha sido professora dela, que ela era daqui perto, e deixei a memória percorrer mais um dos caminhos pretéritos, mais uma vez uma maratona de rostos e décadas e vidas mas mais uma vez, como a primeira, nada. Trocámos o tratamento formal pelo tu, abomino, odeio formalidades bacocas e dispenso distâncias presunçosas. Revisitei o cartão identificativo que a mulher ostentava. Nada, aquele nome associado àquele rosto não me dizia coisa nenhuma. A mulher adiantou que eu era dois anos mais velha, uma enorme diferença quando se anda no Liceu, que eu e os meus colegas éramos bem mais crescidos e mais altos. Talvez daí, talvez daí não me ocorresse coisa nenhuma. E assim fui ficando desconfiada de mim própria perante isto que se me instalou de repente na vida, a ladainha que pressinto irei repetir amiúde Não me lembro e o desconforto dos outro se lembrarem Lembro-me de ti.
A terceira vez que me aconteceu isto foi hoje, quando ao sair de uma porta de um local público me cruzei com uma mulher pequena. Esbaforida, anseava por um café e galguei rumo à rua até ouvir Olá Nonô. E desta vez, depois do meu nome verbalizado, reconheci aquela cara, o mesmo sorriso de sempre mas rodeado pelas rugas de expressão, a decadência bem presente no colo e no pescoço. Mais uma vez teria passado a direito sem dizer um Bom Dia sequer, à primeira vista aquele rosto não me teria dito nada. E eu sei que os outros são o meu espelho, sei que as cãs do rapaz na bomba da gasolina sou eu, sei que a expressão carcomida da minha colega de liceu sou, sei que o pescoço enrugado da minha vizinha de tantos anos sou eu, mas às vezes não me lembro, não me lembro sequer de mim.

11 comentários:

  1. Neste final de semana vou a um encontro de comemoração de 40 anos de formatura. Vai ser uma dificuldade de ligar nomes e rostos...

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  2. Para este cantinho...rabiscado mesmo agora:

    Espelhos da vida

    Estes espelhos da vida
    Que toda a gente tem
    ás vezes olho-me ao espelho
    e penso que não conheço niquem

    Muitas vezes vejo-me no espelho
    gaiata de tranças ao vento
    Pergunto-me se sou eu
    ou se o tempo parou no tempo

    Alguns dias mais tristonhos
    vejo o que o espelho ditou
    a nossa vida não para
    não chores pelo que já acabou

    E há dias mais risonhos
    em que me invade uma luz
    os meus olhos brilham tanto
    que até o espelho seduz

    Ana Mestre

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  3. Tantas, mas tantas vezes que nos perdemos nas memórias de nós.
    Belíssimo texto, Leonor.

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  4. Retrato

    Eu não tinha este rosto de hoje,
    assim calmo, assim triste, assim magro,
    nem estes olhos tão vazios,
    nem o lábio amargo.

    Eu não tinha estas mãos sem força,
    tão paradas e frias e mortas;
    eu não tinha este coração
    que nem se mostra.

    Eu não dei por esta mudança,
    tão simples, tão certa, tão fácil:
    - Em que espelho ficou perdida a minha face?

    Cecília Meireles

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  5. Acho o máximo esses encontros, Aventino, a minha mãe também vai a encontros dos colegas de liceu e de faculdade e eu fui a um da escola primária há uns anos. Foi muito engraçado.

    Obrigada, Ana, sempre incansável.

    Ando preocupada, Cristina, porque a minha memória anda a falhar-me e eu tinha uma memória de elefante.

    Excelente, Aventino.

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  6. Esplêndido espelho este, Leonor. :)

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  7. que lindo texto!!
    e que situação ... e afinal acontece-nos a tod@s :-)

    outro dia aconteceu-me com um colega da faculdade e eu nunca conseguiria lembrar-me quem ele era; mais, até ia jurar que nunca tinha visto aquela cara, se ele não insistisse e me dissesse o nome (foi o nome que reconheci, devo confessar)

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  8. Obrigada, Mike

    Mas não é aflitivo, Maria? E ainda pior porque os outros lembram-se de mim...

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  9. Gostei! Como sempre, muito bem escrito!
    :)
    Já Séneca falava desta situação, numa das suas cartas a Lucílio. Lê, que vais gostar!
    :)
    http://senhorasocrates.blogspot.com/2007/06/ir-terra-indcios-da-minha-velhice.html

    Beijinhos

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  10. Obrigada, Xantipa :-)
    Já lá vou ver
    Beijinhos

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  11. ... é aflitivo, sim ... eu tambem ja passei por algumas situacoes destas ... mas nao as descrevo tao bem como tu!

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