A primeira vez que isto me aconteceu foi quando decidi não procrastinar e perante o primeiro aviso de pouca gasolina no meu humilde carrinho e antes que se tornasse num grito vermelho rumei resoluta à bomba de gasolina. Depois dos trâmites costumeiros uma cara masculina abriu um sorriso largo não sem antes cumprimentar em tom brincalhão Olá Senhora Professora. O rosto já com cãs e longe de ter a frescura adolescente era-me completamente desconhecido. Nada. Nem uma expressão, nem sequer o sorriso ou a expressão do olhar que resiste à passagem do tempo. Um rosto que me reclamava como sua professora, vinte anos já decorridos, e que provava conhecer-me e reconhecer-me duas décadas depois de lhe ter preenchido horas com um linguajar estrangeiro e eu perante ele desastrada, quem sabe com cara de velha patética de boca ao lado e olhar arregalado. E percorria a minha memória, cavalgava anos na procura daquele rosto, e tentei, quase em vão, lembrar-me. Localizei o ano como quem procura o carro perdido no estacionamento, Ah então estás aí, encontrei a turma seleccionando-a como se escolhesse a única chave capaz de me devolver o rosto do molho caótico no fundo da mala. Não mais do que isso, porém.
A segunda vez que isto me aconteceu saía lampeira da mesa de voto, quando alguém me interpelou por causa das sondagens. Enquanto se procuravam canetas e ajeitavam boletins eu disse que era professora. Um rosto de mulher carcomido pelo tempo olhou-me nos olhos É professora e filha de professora. A partir daí entabulou-se conversa, que a minha mãe tinha sido professora dela, que ela era daqui perto, e deixei a memória percorrer mais um dos caminhos pretéritos, mais uma vez uma maratona de rostos e décadas e vidas mas mais uma vez, como a primeira, nada. Trocámos o tratamento formal pelo tu, abomino, odeio formalidades bacocas e dispenso distâncias presunçosas. Revisitei o cartão identificativo que a mulher ostentava. Nada, aquele nome associado àquele rosto não me dizia coisa nenhuma. A mulher adiantou que eu era dois anos mais velha, uma enorme diferença quando se anda no Liceu, que eu e os meus colegas éramos bem mais crescidos e mais altos. Talvez daí, talvez daí não me ocorresse coisa nenhuma. E assim fui ficando desconfiada de mim própria perante isto que se me instalou de repente na vida, a ladainha que pressinto irei repetir amiúde Não me lembro e o desconforto dos outro se lembrarem Lembro-me de ti.
A terceira vez que me aconteceu isto foi hoje, quando ao sair de uma porta de um local público me cruzei com uma mulher pequena. Esbaforida, anseava por um café e galguei rumo à rua até ouvir Olá Nonô. E desta vez, depois do meu nome verbalizado, reconheci aquela cara, o mesmo sorriso de sempre mas rodeado pelas rugas de expressão, a decadência bem presente no colo e no pescoço. Mais uma vez teria passado a direito sem dizer um Bom Dia sequer, à primeira vista aquele rosto não me teria dito nada. E eu sei que os outros são o meu espelho, sei que as cãs do rapaz na bomba da gasolina sou eu, sei que a expressão carcomida da minha colega de liceu sou, sei que o pescoço enrugado da minha vizinha de tantos anos sou eu, mas às vezes não me lembro, não me lembro sequer de mim.
Neste final de semana vou a um encontro de comemoração de 40 anos de formatura. Vai ser uma dificuldade de ligar nomes e rostos...
ResponderEliminarPara este cantinho...rabiscado mesmo agora:
ResponderEliminarEspelhos da vida
Estes espelhos da vida
Que toda a gente tem
ás vezes olho-me ao espelho
e penso que não conheço niquem
Muitas vezes vejo-me no espelho
gaiata de tranças ao vento
Pergunto-me se sou eu
ou se o tempo parou no tempo
Alguns dias mais tristonhos
vejo o que o espelho ditou
a nossa vida não para
não chores pelo que já acabou
E há dias mais risonhos
em que me invade uma luz
os meus olhos brilham tanto
que até o espelho seduz
Ana Mestre
Tantas, mas tantas vezes que nos perdemos nas memórias de nós.
ResponderEliminarBelíssimo texto, Leonor.
Retrato
ResponderEliminarEu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida a minha face?
Cecília Meireles
Acho o máximo esses encontros, Aventino, a minha mãe também vai a encontros dos colegas de liceu e de faculdade e eu fui a um da escola primária há uns anos. Foi muito engraçado.
ResponderEliminarObrigada, Ana, sempre incansável.
Ando preocupada, Cristina, porque a minha memória anda a falhar-me e eu tinha uma memória de elefante.
Excelente, Aventino.
Esplêndido espelho este, Leonor. :)
ResponderEliminarque lindo texto!!
ResponderEliminare que situação ... e afinal acontece-nos a tod@s :-)
outro dia aconteceu-me com um colega da faculdade e eu nunca conseguiria lembrar-me quem ele era; mais, até ia jurar que nunca tinha visto aquela cara, se ele não insistisse e me dissesse o nome (foi o nome que reconheci, devo confessar)
Obrigada, Mike
ResponderEliminarMas não é aflitivo, Maria? E ainda pior porque os outros lembram-se de mim...
Gostei! Como sempre, muito bem escrito!
ResponderEliminar:)
Já Séneca falava desta situação, numa das suas cartas a Lucílio. Lê, que vais gostar!
:)
http://senhorasocrates.blogspot.com/2007/06/ir-terra-indcios-da-minha-velhice.html
Beijinhos
Obrigada, Xantipa :-)
ResponderEliminarJá lá vou ver
Beijinhos
... é aflitivo, sim ... eu tambem ja passei por algumas situacoes destas ... mas nao as descrevo tao bem como tu!
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