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quarta-feira, 14 de outubro de 2009

A outra mulher

Os dias, o período, as regras. Diz-se, e a ciência corrobora, que na segunda metade do ciclo feminino regido por luas e hormonas envoltas em processos químicos e alquímicos misteriosos, as mulheres se metamorfoseiam em seres irritadiços e intolerantes, regidas por Marte e abandonadas por Vénus. Tão sensíveis como cristal da Boémia, tão deprimidas quanto a Marcella de Kirchner, e tão mas tão infelizes que poderiam ser peças fundamentais nos talk-shows matutinos, desfiando desgraças como se descascam ervilhas e se deixam, às desgraças, derrubar-se umas sobre as outras até formarem um promontório de lamúrias e infortúnios, uma pirâmide de desaires e desgraças.
Distam pois uns quatro anos bem medidos, quando, acometida pela instabilidade da serotonina comandada pelas hormonas diabólicas sofri publicamente de tensão pré-menstrual. Era Maio findouro, o crepúsculo anunciava-se por trás do palco em meia-lua, projectando imagens de defensores dos direitos humanos, amantes da paz e lutadores pela liberdade. Martin Luther King, Mahatma Gandhi, Madre Teresa de Calcutá ao som do Imagine de John Lennon cantado por Rui Veloso e tocado por Gilberto Gil. Apoderou-se de mim uma força interior, pujante na alma e, à medida que o sol se escondia e a música subia, o sentimento desfez-se em água que se me brotou inevitável pelos olhos.
Incompetente absoluta na capacidade de chorar por emoção outro remédio não tive, senão resguardar-me nos óculos de sol, incriminar a poeira de me ter afectado as lentes de contacto e causado irritação e remeter-me à mais rotunda evidência: eram os dias, o período, a famosíssima tensão pré-menstrual, o álibi que homem algum ousa questionar e que as mulheres respeitam, reverentes e solidárias. Podia pois abandonar-me ao momento de pura emoção sem que me fossem feitos interrogatórios, os primeiros encetados de mim para mim, inquiridora-mor de mim mesma Tu? A chorar? Estás bem? e silenciosamente acomodar-me ao novo estatuto de criatura emocionável e choraminguenta.
O primeiro aviso ter-me-ia sido dado no dia em que, ladeada por dois soneros em plena Plaza de las Armas, em Havana, me foi cantado o bolero que me acompanhará enquanto memória me for possível Dos Gardenias para ti. A emoção do momento desestabilizou-me o sorriso que saía tímido e desajeitado, os olhos lacrimejantes, contam-me. Acreditemos, contudo, que estariam longe os dias fatídicos e as hormonas a banhos lá para Varadero. Engoli as lágrimas e sacudi a emoção.
E andava eu tranquila na minha vida quando nos últimos quinze dias me vi abalroada pelas forças intangíveis que se me perturbam os últimos resquícios de fleuma. Duas vezes em quinze dias. Uma em Londres ao som do Who wants to live forever? no musical We will rock you, a outra Sábado passado perante a presença avassaladora de Caetano Veloso em palco cantando-me Você é linda. Com tanta proximidade não há hormonas, dias ou regras que me valham. Admitirei pois que sou apenas outra mulher.

E fui repescar esta crónica antiga porque há instantes quando parei para ouvir isto por imperativos profissionais estava com pele de galinha e tinha uma lágrima teimosa a querer embaciar-me o dia luminoso que nos abraça lá fora. Raios.

4 comentários:

  1. "Raios"? Não...
    Who wants to live forever, teve esse efeito em mim. Nessun dorma, com o Pavarotti, também me hidratava a vista. O final do tema principal do "ET", de John Williams, o tema de "África Minha", ou de "O Último Samurai"... Há músicas que fazem vibrar as nossas cordas da alma em harmonia. Se é bom rir com algumas músicas, talvez seja apenas natural exprimir outras emoções com outras músicas.

    Digo eu, que não me posso desculpar como as senhoras :)

    Bem haja.
    J.

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  2. Agora percebo a minha relação com as glâdulas lacrimais. Faltam-me as hormonas. ;)
    Raios digo eu, Leonor. Que crónica fantástica! :)

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  3. Pois é, Drengo, as mulheres ainda podem arranjar desculpa, mas, como digo no texto, já não tenho mais desculpas. Obrigada

    Faltam-lhe estas hormonas, Mike. Obrigada

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  4. Indeed, que cronica fantastica!

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