Se a arte imita a vida ou a vida imita a arte é tão discutível como nos perdermos em considerações sobre o ovo e a galinha. Tenho, não obstante, como certo que coexistem numa relação absoluta de interdependência e que os contextos sociais e políticos são muitas vezes impulsionadores de novas correntes literárias ou tendências.
Foi assim, quando em 9 Novembro de 1989, o Muro de Berlim foi metaforica e literalmente derrubado pela vontade dos homens e mulheres sedentos de mudança. O mundo geográfico alargou-se, fronteiras foram quebradas e com a abertura do Leste e a reunificação da Alemanha, uma nova ordem social surgiu. O encanto foi definhando com a passagem do tempo e as dificuldades de adaptação de ambos os lados intensificaram-se. Seriam afinal ein Volk – um povo só?
E o que tem a literatura a ver com tudo isto? Durante as décadas em que o mundo se dividiu, uma geração cresceu. Desconhecendo as diferenças entre o Leste e o Ocidente, assumiu como sua a realidade quotidiana dos países em que viviam. Sem nunca ter sofrido a separação violenta iniciada em 13 de Agosto de 1961, tinham histórias para contar, histórias além da História, histórias e aventuras de uma infância e adolescência mais ou menos feliz, mais ou menos colorida mas tão legítima como qualquer outra. Surgiu pois uma nova geração de escritores cuja temática central se debruça sobre a vivência anterior a 1989. Thomas Brussig e Jana Hensel são penas dois dos muitos autores que invadiriam o mercado editorial alemão. Brussig destaca-se pelo tom irónico e leve com que aborda a vida para lá do Muro e preenche com palavras o imaginário mitificado do Leste visto pelo Ocidente, enquanto Jana Hensel distingue-se pelo seu carácter autobiográfico, não-ficcional, portanto.
Na Alemanha, esta novíssima literatura não foi acolhida de braços abertos como haviam sido os cidadãos da RDA em Novembro de 1989. Frequentemente acusados de leviandade na abordagem de uma questão tão sensível como a história contemporânea alemã na segunda metade do século XX, e, em casos mais extremos, de desejar o regresso do passado e, com ele, o regime totalitário da RDA, os autores defendem-se, exigindo a legitimidade das memórias apolíticas que forjaram sua matriz.
E, porque acredito que existe memória sem cor política, não posso concordar mais: que faria com a memória da minha primeira ida ao teatro no defunto Monumental para ver o Pinóquio, titubeante e mínima, pela mão segura do meu querido pai? Deito-a fora, apenas porque aconteceu antes de Abril de 74? E o que faço à memória do homem da bolacha americana empurrando um carrinho verde pelo areal infinito e agreste da Figueira da Foz? Faço delete? Lembrar não é necessariamente homenagear ou militar, logo, lembrar a RDA não implica a observância do sistema político então vigente, tal como as memórias de antes de 1974 não atiram os seus donos para as secretárias da António Maria Cardoso, felizmente para mim. A memória é a matéria de que as vidas são feitas, sem ela não há passado e, sem passado, dificilmente chegaremos ao futuro.
Texto repescado do baú da memória
Na fotografia Ampelmann ou Ampelmännchen, um dos símbolos da RDA, transformado em objecto de culto e comercializado em todo o tipo de parafernália para saciar a fome voraz dos turistas. Pode ser encontrado agora pela cidade inteira.
A memória, ai a memória! Mas o que seria de nós sem as nossas memórias?
ResponderEliminarNem mais, Joaquim.
ResponderEliminarBem giros os bonequitos, e é verdade que estão por tudo o que é souvenir.
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