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quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Confissões de uma criatura insólita

A tarde já ia longa. Finalmente a brisa desejada ao longo do dia beijava os corpos engalanados para a ocasião solene. Ao redor da mesa petiscando uns opíparos camarões cozidos com um vinho verde branco, os convivas destruíam barreiras e entregavam-se à festividade do dia, arrumado por fim o reencontro emocionado de anos de separação, mágoas e corações com cicatrizes de sofrimentos passados. E foi aí que na troca de palavras sobre os ofícios que nos dão o pão que surgiu vindo de algures Ela é professora ou terei eu mesma proferido Sou professora. E eis que paira entre os copos de vinho e a degustação dos camarões um misto de incredulidade, compaixão, pena, algo que se instala no ar estival por efémeros momentos e que me faz sentir um bicho raro, um animal estranho, uma criatura insólita. Valeu-me a descontracção do Verão e a degustação de um copo de vinho, o gole bebido com o vigor de quem não se quer recordar. E não me lembro de a minha profissão se ter tornado nisto, neste misto de estupefacção Ah como é forte para aguentar aquilo e de pena paternalista Coitada! Coitadita! É professora… que se há-se fazer. E sei que houve melhores dias para a profissão, dias em que os professores tinham o mínimo de dignidade, dias em que os professores eram respeitados como cidadãos correctos, dias em que os professores se davam ao respeito, dias em que ninguém chateava ninguém: o professor com o seu olhómetro a classificar os alunos a seu bel-prazer, vidas inteiras de incompetências encapotadas, dias em que os pais tinham a capacidade de olhar a adolescência como a mais difícil das etapas, a mais perigosa, a mais passível de omissões e imposturas, alunos que aceitavam a autoridade como algo natural nas relações pedagógicas. E mesmo mudando-se os tempos e as vontades e não sendo uma nostálgica do passado, dói. A pena dói. O descrédito dói. Ser professor dói.

2 comentários:

  1. É certo, Leonor, que «não há bem que nunca se acabe»... mas também «não há mal que sempre dure»! ;-D
    Um beijo solidário (mas sem penas paternalistas).

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