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sábado, 25 de setembro de 2010

Recostada na arte de viver

Certo dia, andava eu às carnes, salvo seja, no supermercado, indecisa entre as costeletas de borrego e o teclado de porco, oscilando entre as bifanas de porco preto e o bife da vazia quando a recentemente beata e dada às lides eclesiásticas se abeirou de mim. Tinha ficado sem o meu pai há algum tempo, não muito, mas o suficiente para saber que, apesar da dor e da ausência irreparável, o rochedo inabalável da minha adorada mãe continuaria firme e com vontade de levar a vida para a frente. Contudo, a morte de quem amamos é sempre um estigma para quem nos olha de fora. O constrangimento, o embaraço, a pena no rosto das pessoas. Desta feita, o ser beato propôs-me que a senhora minha mãe voltasse a dar aulas numa universidade da terceira idade. A minha sábia mãe, depois de uns quarenta e três anos de ensino e de dedicação absoluta à escola e aos alunos, decidiu que a escola para ela seria como o antigo slogan contra as colónias, e, se nem mais um soldado para Angola, nem mais uma aula para coisa nenhuma. Coisíssima nenhuma. Diga-se que a apoiei e apoio incondicionalmente nesta decisão e, portanto, quando a beata se me aproximou ente as carnes, cruzes credo, olha lá o pecado da dita, e me abordou, ainda não percebi esta aliança, igreja - santa casa da misericórdia - universidade da terceira idade – dadores de sangue, a resposta seria um rotundo não. E assim foi. Aos agradecimentos, cumprimentos e palavras agradáveis, informei que, pelo que sabia, a minha mãe não estava interessada, mas que lhe iria comunicar o convite naturalmente, ao que a beata respondeu Mas é bom, olha que faz bem, é bom para estas pessoas que estão encostadas, assim sempre estão ocupadas. E vem isto a propósito das recentes férias da minha mãe. Os telefonemas sucederam-se mas nunca numa base frequente, há mundo para ver e coisas para fazer Olha, estamos aqui em Vouzela, viemos comer um pastel. E depois A seguir vamos a Sul, e depois fomos aqui, ali e acolá. E a comunicação Ainda não sei quando vou. A última que recebi dela contava Aqui vamos no teleférico.
Encostada é vovozinha.

10 comentários:

  1. Quando lá chegar também me quero "encostar" assim, como a senhora sua mãe, Leonor. :-)

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  2. Tem toda a razão, Leonor. Às vezes, irrita-me constatar que só tarde na vida se pode uma pessoa «recostar na arte de viver». Mas depois fico a pensar se, mais novos (e insofridos), seríamos capazes de realmente compreender e apreciar a «arte» e o «recosto». :-)

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  3. E faz muitíssimo bem, Mike, é o que uma parte de nós quer, eu também :)

    Talvez não fôssemos, Luisa, é um facto. O que me irrita é esta ideia de que quando as pessoas se reformam ficam umas 'coitadas' sem interesses nem vida própria. Há uns tempos uma colega também comentou o facto de irmos com frequência almoçar com a minha mãe que assim ela sempre se mantinha ocupada, como se fazer o almoço fosse alguma ocupação de jeito para alguém. Enfim, o preconceito irrita-me bastante.

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  4. Uma vez dei uma aula numa dessas universidades e foi uma experiência muito gira!

    Estou completamente de acordo com o que dizes. Infelizmente, nem toda a gente tem a garra da tua mãe. Em Portugal, ainda há um bocado a ideia de que as pessoas viúvas ou de mais idade não podem/devem/conseguem ter uma vida rica.

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  5. Claro que deve ser uma experiência gira e muito gratificante. Já fui formadora de Inglês nas Novas Oportunidades e é espantoso o entusiasmo de quem quer aprender. É muito gratificante, sem dúvida.
    A minha mãe é que tem outras actividades que lhe proporcionam mais prazer, nomeadamente poder gerir o seu tempo sem relógio e a seu bel-prazer e fazer o que lhe apetece :)

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  6. Cheguei! Li o teu texto e, como sempre, adorei. Tal como apreciei os comentários. Obrigada! Reforma é reforma - dei tudo o que havia a dar à minha profissão, com muito amor e dedicação. Mas passou... penso que não sou saudosista.Gosto de encontrar os alunos, as colegas, de ir à minha escola, mas adoro andar sem horas, fazer o que me apetece com o mesmo prazer com que cumpri a minha profissão. Aulas mais, não!!! 'Carpe diem' é bom! :)

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  7. Leonor, até consegui sentir o visco da beata. Conheço o tipo.
    Um beijinho para a sua mãe, ora!

    :)))

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