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segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Os velhos que paguem a crise

Desconheço o nome da criatura. Apanhei-a pela manhã durante o pequeno-almoço, enquanto cumpria o vício e o ritual de me actualizar sobre o estado do país e do mundo. Dever-me-ei assustar com este gosto masoquista? Dizia então a criatura, e foi logo após as novas medidas do governo Sócrates, que os reformados deviam sofrer mais cortes e isto, segundo a dita comentadora, porque já não tinham encargos com a educação dos filhos e tinham uma redução de despesas. Portanto, e assim sendo, os reformados que não vivem declaradamente pobres ou no limiar da pobreza devem pagar a crise. Já que não têm filhos para alimentar nem para comprar livros nem gadgets nem roupa de marca nem saídas à noite, só têm é que pagar mais do que os restantes cidadãos. Argumento curioso, tão curioso quanto inane e injusto. Não interessa se os reformados, pensionistas ou como lhes queiram chamar, descontaram já uma vida inteira para a sua reforma, ou se já contribuíram com o melhor dos seus anos para este país. Nem todos vivem à custa de reformas chorudas de lugares ao sol por via de amigos, amiguinhos e amigalhaços. Há quem tenha trabalhado honestamente e muito, com dedicação e empenho, e cumprido a sua missão.
O que mais me encanitou, e se encanitou, foi, por um lado, o preconceito de que os velhos são mesmo velhos, seres a quem a força da gravidade foi lesta e os deixou de carnes dependuradas, desgraçadamente sem plásticas, e mentes toldadas pela neblina da memória embaciada, e que não têm vida própria nem o direito de, se lhes apetecer, ir a banhos para as Caraíbas ou ficar em casa a devorar os livros que não conseguiram durante a vida activa ou ainda fazer rigorosamente o que lhes der na gana. Por outro lado, esta ingerência na vida privada dos cidadãos não me deixou a mais calma das criaturas. E que temos nós a ver como e em quê os reformados gastam o dinheiro e que direito se tem de fazer inferências sobre a vida alheia apenas porque são velhos? E se não forem saudáveis e se precisarem de cuidados ou de pagar um lar? Nada disso interessa para a jovem e enxuta criatura, ainda com as carnes no lugar e a boca rápida em cuspir disparates. Neste país ser velho é igual a não ter qualquer dignidade. Pobre, destituído de tudo. Além de serem abandonados nos hospitais, vítimas de maus-tratos e de abusos têm também de pagar a crise. E por que não exterminá-los? Raio de gente.

5 comentários:

  1. Também já ouvi comentários desse tipo, Leonor, e acho-os chocantes. Sobretudo porque, se é verdade que as pessoas, à medida que envelhecem, vão conseguindo viver com menos, também é verdade que as despesas com a saúde entram num crescendo. E os riscos são tão altos, que impõem a realização de poupanças para as emergências, porque não há, frequentemente, seguros que as cubram. É horrível a visão egoísta que alguns fazem da velhice. Julgar-se-ão esses pobres néscios votados a uma eterna juventude?

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  2. Por aqui responderíamos à comentarista: "Eu sou você amanhã."

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  3. Mas ninguém tem nada a ver que as pessoas consigam viver com menos, Luisa, e sei que concorda. Se o conseguem, óptimo, é sinal que podem finalmente fazer outras coisas que antes lhes eram impossíveis e que estam saudáveis sem precisar de deixar o ordenado na farmácia ou em outros cuidados. Fiquei uma fúria pelo egoísmo. Coitados dos pais da criatura. Era uma comentadora de economia ou coisa parecida, julgo que na SicNotícias.

    Ora bem, Aventino, quanta estupidez nesse mundo. Portugal vai de mal a pior :(

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  4. Essa ainda não tinha ouvido. Gente pobre de espírito, coitados!....

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