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terça-feira, 28 de dezembro de 2010

O passado num par de meias

Como boa portuguesa e cumprindo a tradição de deixar compras para a última da hora adentro um desses antros demoníacos de consumismo tão reprováveis por camadas dispares da sociedade: os elitistas que não se querem misturar com o povão exaltado e os alternativos que embora sendo do povão levam vidas zen desprovidas de hábitos materiais de tudo comprar e de desbaratar inanemente o vil metal.
Seriam umas três e meia da tarde, provavelmente a hora proibida com as férias escolares e os adolescentes aos magotes por todo o lado. O estacionamento revelou-se um massacre e quando estava mesmo a desistir, no momento preciso em que comentara com os meus botões, mais uma volta e vou-me embora, eis que uma alma caridosa se lembrou de me deixar um lugar. E estava tudo a correr relativamente bem, melhor do que seria de esperar tendo em conta o estacionamento difícil, mesmo depois de ter assistido a um homem de telemóvel em riste e de frente para os clássicos, fitando o Ben-Hur e a Serenata à Chuva afirmar alto e peremptório para a interlocutora do lado de lá Pronto, não compro nada. Este ano não compro nada para ninguém! quando por necessidade estrita entro numa dessas lojas que vendem meias, collants, leggings e outras coisas que se destinam aos membros inferiores. Depois de aproveitar uma promoção de cinco pares por x e incapaz de escolher mais cores, dirijo-me à caixa e espero pela minha vez de pagar. À minha frente uma mulher nos seus cinquenta anos, bem aprumada, estende um par de collants à empregada e ordena Um embrulho de oferta se faz favor. Não sei se por antecipação da crise negra que nos vai depauperar a todos no próximo ano, por forretice pura e dura ou apenas uma pungente falta de imaginação, a verdade é que tinha à minha frente a materialização do demónio de Natais pretéritos e de um Portugal pobre, cinzento e com uma enorme falta de imaginação onde os pobres homens eram brindados com meias e cuecas. O passado acabara de se revelar à minha frente e de regressar, ainda que tivesse sido feito um upgrade para uns moderníssimos collants. Um destes dias estamos a ir a Badajoz comprar caramelos e serviços de pirex castanho outra vez. Um susto.

5 comentários:

  1. Mas sabe, Leonor, as próprias beneficiárias dos presentes já é o que sugerem, imbuídas de um sentido utilitário: meias, pijamas,… aquilo de que necessitam, mas em que não gostam de gastar o seu dinheiro. As «velhas» tias que o façam. Em todo o caso, é uma realidade que a imaginação varia na razão directa do peso da bolsa. :-)
    Um bom (ou, pelo menos, melhor do que espera) 2011!

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  2. Pois, mas é um bocado estranho, Luísa. E esta foi apenas a primeira vez, no dia seguinte numa outra loja que não era de meias repetiu-se a cena.
    Um bom 2011, Luísa, mesmo que os auspícios não sejam os melhores recuso-me a ceder ao que lá vem.
    Beijinhos

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  3. Não vivi nesse Portugal pobre mas num país dessa Europa nórdica e rica mas adorei o texto. Acho até que, sem saber desse Portugal, o revivi!

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  4. A minha mãe oferece-me sempre meias e collants. É uma tradição nossa ;)
    Beijos.

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  5. Era um país triste e pobre, blonde, termos conseguido sair foi um milagre. Digo eu daqui, que nada sei de Economia, que ainda bem que aderimos ao euro, se não estaríamos irremediavelmente prisioneiros neste país.

    Mas isso é uma brincadeira vossa, fantasminha, embora nada me garanta que o que vi não fosse também para uma bricadeira :)

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