Enquanto ajeito o molho de coentros trazido como contrapeso de um quilo de pêssegos e uma meloa sinto o aroma fresco do sul, uma contradição de dias quentes que me afagam sempre e me enchem a alma de alento para os dias sombrios. E o Norte a que cheira?
Rumo ao frigorífico e retiro sem enlevo a cebola congelada, a salvação de donas de casa atarefadas e contemporâneas pouco dedicadas a processos morosos de misturar sabores entre afazeres múltiplos, a casa que fica decididamente arrumada para dias que não vêm nunca. Derramo no tacho sobre a cebola um fio de azeite e meia folha de louro. Lá fora há um Verão por cumprir. Um vento frio que sopra no canavial e pela janela, pela mesma onde vejo passar barcos e navios, tarjas de cor diferente, ora prateadas em dias de Estio, ora cinzentas quando este emigra algures e outras um manto azul e intenso, há um chamamento para nele navegar, desconhece-se até onde. Volto ao fogão e mexo com calma a cebola lentamente em namoro com o azeite, um aroma leve que se liberta acompanhado de um frigir pequenino, um sussurro singelo. E o arroz então. Arbóreo de bagos voluptuosos.. E misturo. Meio copo bem medido. E mexo até ficar enlaçado na cebola e no azeite. Um copo de vinho branco frutado sem cerimónia nem o rigor de cozinhas espartanas. A minha cozinha é feita de momentos de libertação e transgressão, espelho inequívoco de quem sou. E envolvo até o vinho branco se sumir lentamente. O momento ideal para mais um copo de água bem quente, esse sim, deitado com carinho e calma enquanto os aromas se casam. O ritual repetido como o remanso dos Domingos de manhã. A tranquilidade de que faz parte abrir e fechar as portas às gatas, o ladrar sedento de festas do cão do vizinho, mesmo ali ao lado. E por fim o Verão. O cheiro inequívoco desse Sul que sou. O molho de coentros lavado em água corrente e abundante e cortado com a tesoura das ervas aromáticas para o tacho. E mexer. E rectificar.Mais coentros. Deixar que a generosidade cumpra o seu propósito de temperar, comida, almas, vidas. E sentir o aroma que se liberta, esse cheiro de gentes do Sul, de conquilhas comidas na esplanada com céu azul levemente em decadência do dia que adormece e as gaivotas que se fazem ouvir ao longe, de sopa de cação contra as searas de casas brancas bordejadas de azul forte. E o Norte a que cheira?
Receita maravilhosa e poeticamente escrita! Lindo texto! E posso garantir que o risotto eatava igualmente maravilhoso :)
ResponderEliminarAinda bem que o risotto estava bom :)))
ResponderEliminarTenho de perguntar à Helena dos 2 dedos de conversa que ela é que é uma mulher do Norte e do Norte. Cheirará a porto? a rojões? a vinho verde?
ResponderEliminar;-)
Esta noite vou experimentar: risotto de coentros é a bem dizer uma coisa, entre tantas outras, que ainda não me havia ocorrido e que me parece divinalmente, Leonor.
Olha a que cheira o meu Norte:
ResponderEliminar"O meu Norte cheira a leite-creme acabado de queimar com o ferro que guardei da minha avó. Cheira ao madeiro de Natal na praça da aldeia. E cheira a Norte. Há um cheiro no ar, especialmente no Inverno e Outono, que aqui em baixo nunca consigo sentir."
Copy and paste de um comentário meu no Delito de Opinião.
É mesmo bom!
Deita-lhe um caldo de galinha que fica ainda melhor.
Bom apetite :)