O penúltimo dia de Agosto
brindou-me com chuva. Pela janela um dia cinzento. A cidade meio pálida e
precocemente escura. Largo as malas e faço o que mais gosto: passear, ver,
deambular com a ligeireza de quem nada tem para fazer se não deixar-se ir por
entre a multidão e sentir, respirar, ver.
Subo a rua. O passo mais rápido
pela chuva insistente na cidade que me surpreende sempre e nunca se esgota em
cada visita. E entro na livraria.
Resisto a quase tudo menos a uma livraria recheada de títulos novos, livros
baratos e o ambiente de uma religiosidade veneranda de silêncios pontilhados de
virar de páginas virgens à espera de serem lidas. Um livro. Falta-me sempre um
livro.
Os olhos recaem sobre o mais
recente livro, à data, de Wladimir Kaminer, Meine russischen Nachbarn, e é esse
que há acompanhar-me nos dias de Berlim, dias de sol e de chuva, dias de muito
ver e de digerir história e gente a cada esquina. Não o acabarei, contudo. A cidade absorve-me.
Meine russichen Nachbarn, os meus
vizinhos russos, conta a história de dois russos, Andrej e Sergej que convenientemente
ocupam o andar por cima do de Wladimir Kaminer, lá na Schönhauser Allee, algures
em Prenzlauer Berg, uma zona emergente de Berlim a viver os seus melhores dias
depois da Queda do Muro em Novembro de 1989.Andrej e Sergej encetam uma nova
vida nesta nova Europa que se quer livre e democrática derrubados os muros
físicos que a cortavam em duas, os de lá e os de cá, Ossis e Wessis. Rondando
os trinta anos, Andrej de Leningrado,
hoje São Petersburgo, e Sergej da Bielorússia provocam uma pequena revolução na
vida aparentemente pacata dos habitantes do prédio de Schönhauser Alle. A
porteira não gosta, os vizinhos reclamam do trompete logo pela manhã. Andrej
luta com a língua alemã e apaixona-se pela professora enquanto Sergej assina
exemplares d 'O Capital de Karl Marx que venderá no e-bay como relíquias do
grande filósofo e ideólogo. As aventuras sucedem-se.
E ambos teriam tido uma vida
anónima e tranquila, caso tivessem escolhido um outro local para viver. É que
Kaminer é um observador atento da realidade, um crítico mordaz das várias vidas
que já teve e escritor implacável a quem as aventuras acontecem sempre e de
forma renovada. Não poderia desperdiçar esta oportunidade e fixa-os a uma
narrativa de leitura muito fácil sem artifícios ou malabarismos estilísticos e
despojadamente cativante. Na vida destes dois russos vemos desfilar a União
Soviética a que Kaminer disse adeus em 1990 para abraçar Berlim como sua nova
pátria, as cidades também são pátria. E as histórias entrelaçam-se. E os
tempos. Há a União Soviética com as suas características peculiares, os russos que
não riem e Kaminer explica porquê, os moscovitas, reconhecidamente rudes nos
modos e a Rússia actual de novos-ricos. E há a Alemanha e Berlim, a vida na
cidade, ressentimentos e singularidades. Muito portanto num pequeno livro de
222 páginas em tom humorístico e divertido.
A leitura implica um tu com que
se possam trocar impressões, um interlocutor que se possa rir connosco ou opor-se
ao que bebemos nos livros, um duelo de palavras e ideias. Para minha grande
pena só dois livros de Kaminer estão traduzidos em Português O panorama
literário alemão virou uma página acompanhando os ventos de mudança na Alemanha
e na Europa. Wladimir Kaminer é um dos mais lidos escritores de língua alemã, por
cá quase um desconhecido. Para quando mais um Kaminer em português, senhores
editores? Até lá deixo-vos com uma pequena amostra:
"Um professor esforça-se por explicar a um pioneiro o que é o comunismo numa linguagem acessível. 'O comunismo é', diz ele, 'quando
tens de comer morangos com natas todos os dias ao pequeno-almoço '. ‘Mas eu não
gosto de morangos com natas’ responde o aluno. 'Não interessa', esclarece o professor,vais comê-los na mesma,
quer gostes quer não".
Também no Delito de Opinião
Que bela crítica! E que vontade de largar tudo e começar a ler os livros de Kaminer um a um, do primeiro ao último.
ResponderEliminarO problema é que ele escreve mais depressa do que eu consigo ler...
Obrigada, Helena. Agora estou curiosa para ler o último.
ResponderEliminarBeijinhos
pensava que até agora só um está traduzido: Militärmusik.
ResponderEliminarQual é o outro?
É o Russendisko, os dois pela Cavalo de Ferro.
ResponderEliminarLeonor, não fazia ideia que o Russendisko também estava traduzido para português! Já começa a haver quantidade suficiente para um vício generalizado...
ResponderEliminarCopiei hoje este post para o meu blogue. A ver se aumento as visitas lá, hehehe.
Obrigada :)
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