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quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Gatos e homens


Foi a segunda vez que me visitou. Hoje passeando-se pela manhã de sol de Inverno, anunciou-se do outro lado da casa onde o sol não bate nos dias de equinócio e o meu pai renasce no azevinho à porta de casa. Ouvi-o enquanto estendia roupa. Estes dias de sol são muitas vezes dias ou manhãs de lavar roupa. Alma solar, gosto da roupa lavada a cheirar a sol e a vento se o houver, e de a sentir levemente perfumada de luz e meio áspera ao toque. Ouço-o. Insistente. Os cães ladram furiosos. Alguém que os irrita. Contorno o quintal e encontro-o em cima do muro. De olhos verdes profundos fita-me e solta um miado mansinho. Chamo-o mas não vem. Os gatos nunca obedecem a uma ordem que os submeta a vontades alheias. Obedecem sempre e apenas à sua vontade. Vejo-o fugir, negro e tão luzidio, não sem antes brindar a vizinha do lado com um jacto viril para o muro, ela odeia gatos e eles sabem. Sabem-no muito bem. Na casa em frente a minha outra vizinha, dona de gatos e cães, amiga da bicharada. Trocamos palavras. Ela diz-me que o gato preto estava no passadiço rente à casa, lá onde se aventura quem é da casa e onde a sombra é rainha, Inverno ou Verão. E lembro-me. E pergunto-lhe Seria o meu gato? A insistência da visita deixa-me inquieta. Ela diz-me que não, ele não viria tão longe. Confirmo o olhar verde e o pêlo mais comprido. Digo-lhe, Pois, o meu tinha olhos de avelã e pêlo mais curto. O meu era um gato preto que um belo dia de Fevereiro se meteu dentro de uma carrinha aqui à porta de casa sem dizer nada a ninguém ou soltar um miado e quando a carrinha cumpriu o seu destinou e rumou a um lugarejo aqui perto, o gato faria a sua primeira e última viagem num silêncio profundo que lhe ditaria a má sorte. Ao abrirem a porta da carrinha, o gato fugiu assustado e nunca mais o vimos. Horas perdidas a chamá-lo em vão. No mato, entre os canaviais lá onde só há cheiro a terra e o cantarolar de pássaros e os ruídos de outras criaturas invisíveis são a única banda sonora possível. Dias e dias a chamar Chico! Dias e dias a rumar ao sítio maldito na esperança vã de que voltasse chamado pela voz que tão bem conhecia. Outra solução não houve se não arrumar lutos e deixar ir aquele dia malfadado de Fevereiro, treze por sinal, e o meu gato de casaco de veludo. Mas hoje voltou, voltou há uns dias à memória como voltam sempre as ausências antigas, assim em dias de sol de Inverno, soltando um miado baixinho e fugindo-nos sem que as consigamos apanhar e por instantes ter a sensação de que ali estão afinal. 

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