Foi a segunda vez que me visitou.
Hoje passeando-se pela manhã de sol de Inverno, anunciou-se do outro lado da
casa onde o sol não bate nos dias de equinócio e o meu pai renasce no azevinho
à porta de casa. Ouvi-o enquanto estendia roupa. Estes dias de sol são muitas
vezes dias ou manhãs de lavar roupa. Alma solar, gosto da roupa lavada a
cheirar a sol e a vento se o houver, e de a sentir levemente perfumada de luz e
meio áspera ao toque. Ouço-o. Insistente. Os cães ladram furiosos. Alguém que
os irrita. Contorno o quintal e encontro-o em cima do muro. De olhos verdes
profundos fita-me e solta um miado mansinho. Chamo-o mas não vem. Os gatos nunca
obedecem a uma ordem que os submeta a vontades alheias. Obedecem sempre e
apenas à sua vontade. Vejo-o fugir, negro e tão luzidio, não sem antes brindar
a vizinha do lado com um jacto viril para o muro, ela odeia gatos e eles sabem.
Sabem-no muito bem. Na casa em frente a minha outra vizinha, dona de gatos e
cães, amiga da bicharada. Trocamos palavras. Ela diz-me que o gato preto estava
no passadiço rente à casa, lá onde se aventura quem é da casa e onde a sombra é
rainha, Inverno ou Verão. E lembro-me. E pergunto-lhe Seria o meu gato? A insistência da visita deixa-me inquieta. Ela
diz-me que não, ele não viria tão longe. Confirmo o olhar verde e o pêlo mais
comprido. Digo-lhe, Pois, o meu tinha
olhos de avelã e pêlo mais curto. O meu
era um gato preto que um belo dia de Fevereiro se meteu dentro de uma carrinha
aqui à porta de casa sem dizer nada a ninguém ou soltar um miado e quando a
carrinha cumpriu o seu destinou e rumou a um lugarejo aqui perto, o gato faria
a sua primeira e última viagem num silêncio profundo que lhe ditaria a má sorte.
Ao abrirem a porta da carrinha, o gato fugiu assustado e nunca mais o vimos. Horas
perdidas a chamá-lo em vão. No mato, entre os canaviais lá onde só há cheiro a
terra e o cantarolar de pássaros e os ruídos de outras criaturas invisíveis são
a única banda sonora possível. Dias e dias a chamar Chico! Dias e dias a rumar
ao sítio maldito na esperança vã de que voltasse chamado pela voz que tão bem
conhecia. Outra solução não houve se não arrumar lutos e deixar ir aquele dia
malfadado de Fevereiro, treze por sinal, e o meu gato de casaco de veludo. Mas hoje voltou, voltou há uns dias à
memória como voltam sempre as ausências antigas, assim em dias de sol de
Inverno, soltando um miado baixinho e fugindo-nos sem que as consigamos apanhar
e por instantes ter a sensação de que ali estão afinal.
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