Páginas

sábado, 28 de janeiro de 2012

João

Hoje. Não pela muito fresca mas depois de o corpo ter descansado o suficiente e a alma estar mais enxuta para aproveitar o fim-de-semana enquanto não nos tiram também esse prazer, já que de direitos estamos conversados, encetei essa tarefa hercúlea de fada do lar empedernida e providenciar para o lar e suprir as faltas. Rumo ao supermercado, encontro-me com um povo façanhudo e mal disposto, nem um sorriso, as almas vazias e os passos automatizados. Os supermercados podem ser locais muito deprimentes, tanto mais deprimentes quanto mais casais às compras. Há alturas em que a solidão pesa menos e a solidão a dois pesa sempre mais. Infinitamente mais. Na fruta ouço alguém chamar João, anda cá. Vejo aproximar-se uma criança sozinha, entre os três e quatro anos. Põe-se à minha frente com uma alface dentro do saco. A mãe repreende-o e fala-lhe como se tivesse vinte anos, de tom seco e indiferente. Essa senhora estava à tua frente. Tens de esperar. Sorrio-lhe e digo Deixe estar. Não faz mal, enquanto o João do alto dos seus quatro anos mal medidos se estica num esforço sobre-humano para conseguir que a ponta do saco chegue ao balcão. A mãe assiste, longe, impávida. Que se desenvencilhe. Nem um sorriso, nem uma ajuda à criança. Um iceberg falante. Volto a encontrá-los no peixe. A criança aparece depois de ser chamada mais uma vez, procura conforto na mãe de braços cruzados, hirta e impassível, e tenta enrolar-se-lhe nas pernas. Choraminga Mãe, tou cansado. A mãe continua de braços cruzados. A criança intensifica a súplica de atenção Mãe, colo! A mãe continua de braços firmemente cruzados. A criança não lhes chegará assim. Um alívio portanto. Menos uma preocupação. A criança não desiste Mãe, colo, tou cansado! Começa a chorar. Suplica-lhe Mãe, dói-me as costas. Quando dá uma volta vejo-lhe os olhos marejados de lágrimas e soltam-se em cascata dos olhos escuros, tão escuros agora. A mãe retorque-lhe algo e mantém os braços cruzados como se se defendesse de um fardo de quatro anos que reivindica atenção e que tem a veleidade de se cansar num supermercado num Sábado de manhã. Uma mulher com uma criança ao colo lança-lhe um olhar deprimido, não suficientemente forte para que seja de reprovação, suficientemente maternal para que se lhe subentenda a incompreensão. Tanta indiferença. Quanta frieza. A criança chora sozinha. Ninguém diz nada. A mãe recolhe o peixe. Espeto-lhe um olhar e sei que o sente porque me olha de volta. O João choraminga. O João poderá chorar e suplicar a atenção a que qualquer criança deve ter direito. A mãe, essa, permanece de braços cruzados e olhar glacial. Hirta e gélida. A indiferença mata. Morro de pena do João. Chega de supermercado.

Também no Delito de Opinião.

4 comentários:

  1. Leonor,
    é sempre complicado opinar sobre a competência dos outros em educar os seus filhos mas também vejo bastantes casos de "falta de colo" e alheamento dos pais.
    Em abono da verdade também vejo muita falta de umas bofetadas. Algumas crianças a que a moda chama hiper-activas eu digo apenas que são bestas sem educação.
    Mas também aí a culpa não pode ser imputada às crianças, nasce dessa falta de atenção parental, parece-me.
    Bom f.d.s.

    ResponderEliminar
  2. Sim, é sempre complicado e é verdade que muitos precisam de ouvir 'não' e de ser contrariados. Outra coisa foi o que presenciei com uma criança tão pequena. Aquela mãe é que é um animal, que me desculpem os mais sensíveis.
    Bom Domingo, André :)

    ResponderEliminar
  3. Custou-me tanto ler este texto. Tenho dois filhos, um com 14 anos e outro com 4 anos. Sempre dei colo, beijos, carinhos, abraços, aos meus filhos, sem limite. Já ouvi dizer vezes sem conta que sou demasiado "maricas" com os meus filhos, que dou demasiado mimo. Não tenho paciência para essas conversas. Os meus filhos são bem educados e carinho nunca fez mal a ninguém. E contrario-os sempre que necessário. Hoje vou abraçar ainda mais os meus filhos.
    Abraço.
    Cristina

    P.S. gosto muito deste blog, em especial porque é dedicado ao seu pai. Perdi o meu há 1 ano e ainda me sinto perdida.

    ResponderEliminar
  4. Acho que faz muito bem em dar carinho aos seus filhos, Cristina. O carinho não exclui a firmeza, acho eu, que não tenho filhos, mas também me faz muita confusão a falta de um toque ou de um beijo, como no caso que aqui relatei. Será assim tão difícil ver que a criança precisava de carinho e que é normal que fique impaciente?
    Beijinhos e força para aguentar a ausência.

    ResponderEliminar

Comments are welcome :-)