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terça-feira, 24 de janeiro de 2012

A vida dos outros


Ia avisada. Sabia ao que ia. Relembraram-me Hoje vamos ver o filme mas tu já viste. Sim, já tinha visto. Arrumei-me na cadeira, olhei para o relógio e pensei Cento e trinta e sete minutos. É capaz de ser muito. É capaz de ser de mais para uma sexta-feira em fim de tarde quando se arrumam as semanas e o corpo se prepara para nada fazer, nada pensar. Como se possível fosse.
O filme é de 2006, ganhou o Óscar do melhor filme estrangeiro e conta a história das vidas sob observação constante, espartilhadas por um regime que tudo sabia e via para proteger uma ideologia. A Gerd Wiesler, um oficial da Stasi, é atribuída a tarefa de vigiar a vida Christa-Maria Sieland e Georg Dreyman, uma actriz e um escritor proeminentes da cena cultural de Berlim. Gerd Wiesler envolve-se nas vidas que observa, ultrapassando largamente o que lhe havia sido atribuído e determina o destino dos dois artistas. Interessante, actual, um testemunho da História mas que ficaria sempre aquém não fosse o desempenho notável de Ulrich Mühe, desaparecido depois do lançamento do filme, e a acuidade de Florian Henckel von Donnersmarck.
Para os fervorosos anti-comunistas o filme constitui a possibilidade de identificação e a revolta esperada. Para os que, como eu não o são, a interpretação excelente e o ambiente tão próprio e tão bem conseguido de se ter a vida sob observação sobrepor-se-á ao resto. O desconforto e o incómodo de nunca estarmos sós, de nunca sermos apenas nós, mutilados e extirpados da liberdade que temos como garantida como se sempre tivesse sido assim. E ainda que o repúdio do regime da RDA seja inevitável, Gerd Wiesler vai crescendo como um homem solitário, de silêncios largos e olhares penetrantes por quem se vai nutrindo simpatia. Provavelmente a grande ironia do filme e não menos importante polémica. Há uns anos em Berlim, um orador numa palestra avisou que não pensássemos, que o filme era ficção, Aquela gente da Stasi não tinha a menor contemplação ou compaixão, disse. Pode ser. Sabemos que sim. Mas HGW era diferente. É isso que o filme nos quer mostrar, um homem só para quem a vida dos outros passou a ser a sua própria vida e só através dessa, uma vida por entreposta pessoa, se acende uma centelha frágil de humanidade e de sentimentos. Ficará para saber se o móbil para a sua actuação teria sido apenas a compaixão pela vida de alguém que ousara  pensar e denunciar, um delito grave em regimes musculados, ou se a sua intervenção representa a insurreição contra o regime e anuncia profeticamente a derrocada da RDA. Não restarão dúvidas quanto à influência que a vida de Ulrich Mühe terá tido na construção de Gerd Wiesler.
Esta foi a terceira ou quarta vez que vi este filme e foi a terceira ou quarta vez que me emocionei. A tragédia de HGW é a tragédia de muitos que se viram de repente sem a sua terra, para o bem e para o mal, sem  referências e sem a vida como sempre a conheceram. Também para o bem e para o mal. E a tragédia da solidão humana. E a irracionalidade de regimes totalitários. É muito. Muito num filme só. Num filme tão intenso que revê-lo é penetrar mais uma vez na história e na alma humana. São estes os filmes que importam. Os que perduram. Os que mesmo passadas três ou quatro vezes continuam a emocionar-nos.  São estes os meus filmes. Deve ser isto, a arte. 


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