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segunda-feira, 19 de março de 2012

Marcas


Tínhamos acabado de almoçar. A mulher das sete tarefas que há em mim tinha concluído quase em simultâneo mais uma daquelas cartas pomposas para acompanhar uns documentos, quando lhe pedi que ele me trouxesse o papel. Estende-mo. Olho para ele incrédula. Segura por uma ponta, a folha tinha o canto inferior esquerdo amarfanhado, a marca bem visível de que alguém por ali passara, o polegar e o indicador. Imperdoável. Como foi capaz? Isso faz-se? Arremessei-lhe uma admoestação, sim, como podia? e concluí Se o meu pai aqui estivesse dizia-te já que feriste o papel. Estranho conceito, este, de ferir o papel, mas assim era para ti, meu pai, o papel manuseado com todo o cuidado para não deixar marcas, sem mácula, uma folha inteirinha sem ofensa ou mossa, assim como desejamos que a vida às vezes seja.
Passam dias e noites, meses, estações, anos, o azevinho da entrada está enorme e a glicínia irrompe em exuberâncias mil de perfume e cor. Agora já não espero que regresses, já sei que não voltas. É assim a vida sem ti, meu pai, a folha de papel da minha vida que se vai rabiscando com um canto magoado, a marca indelével de ti, a ausência de que nunca se recupera. Ferida.


No Dia do Pai. Para o meu.

11 comentários:

  1. Um abraço especial neste dia, Leonor. Acredito que não seja fácil...

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    1. Muito obrigada, Ilídia. É difícil. Todos os dias.

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  2. Leonor sei bem do que falas....
    Sinto falta do meu todos os dias, desde os meus 15 anos....falta de tudo o que ele representava e ainda representa para mim. Mas estas datas marcam sempre.
    Penso sempre que ele está a olhar por mim e pelas minhas princesas.
    Um grande e forte abraço:*

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    1. Esta ausência dá cabo de nós, Pipas. Abraço apertadinho para ti também e muito obrigada pelas palavras.

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  3. Nônô:

    Também sinto, não a falta do meu pai, que nunca me deixou completamente, mas a falta de alguém que me guie por estes caminhos tortuosos que pensei um dia não ter de voltar a percorrer.

    Um beijo.

    Rui

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  4. Que bonito, Leonor. Um beijinho atrasado mas sentido. O meu pai o ano passado adoeceu e temi o pior... Mas cá está. Por isso, imagino o não. Fica bem, querida colega.

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    1. Obrigada, Fátima. Beijo grande, aproveita bem o teu pai :)
      Estou exausta do fim do período. Completamente.

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  5. Lindo! Comecei a ler este blogue hoje e sinto-me em casa. Perdi o meu pai e só eu sei a ausência que deixou na minha vida.

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  6. Obrigada. Foi assim que criei este blogue. Peguei na dor e na ausência e fui vertendo-a em palavras.
    Bem-vinda :)

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  7. Leonor, vi hoje este teu post e chorei. Também sinto essa ausência que fals e que não se recupera.
    Um forte abraço
    Maria

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