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domingo, 9 de outubro de 2005

Bem de Abril *

De há uns bons quinze anos a esta parte o meu pai, aproximando-se a data das eleições, fossem elas legislativas, autárquicas ou presidenciais, anunciava indignado "Não vou votar, este ano não vou votar!". Obviamente, estava aberta a discussão e a partir daquele anúncio esgrimiam-se argumentos. Que votar era um dever e uma obrigação cívica, a expressão da vontade do povo, um dos pilares da democracia, que a abstenção significava um alheamento quanto aos desígnios do país, que o 25 de Abril nos deu esse direito, que uma pessoa esclarecida e inteligente como ele não podia fazer tal coisa e por aí fora… Claro que tudo isto ele sabia e que com tudo isto concordava. Vivera antes do 25 de Abril, sempre se revoltara contra a ditadura e a censura, indignara-se com a guerra do Ultramar. Rejubilou com a Revolução dos Cravos, portanto. Contudo, uma bela troca de ideias era algo muito estimulante e que lhe dava um imenso prazer.
Acima de tudo o que motivava esta anunciada abstenção era a desilusão pelo rumo do país, pelo descaminho dos ideais de Abril, o desencanto pelo compadrio descarado e pela coroação dos corruptos. Perguntava-se muitas vezes “Foi para isto que se fez o 25 de Abril?” ou então comentava indignado perante sacos azuis e apitos dourados “Não foi para isto que se fez uma revolução, caramba!”
Nos últimos anos, ao decretar antecipadamente a sua abstenção, de nós não obtinha qualquer resposta e quando a minha mãe, ao sair de casa pela manhã em dia de eleições, lhe anunciava “vou votar” ele, não sei se em silêncio ou não, acompanhava-a e lá iam os dois lado a lado como sempre iam, também na vida, até hoje. Quando eu chegava a casa, ele dizia apenas, “Já fomos votar”. Na verdade, sempre exerceu o seu direito de voto.
Este ano a minha mãe terá anunciado “vou votar”. Este ano a minha mãe não teve a seu lado a presença física do meu pai. Este ano o meu pai não me relatou de viva voz “Já fomos votar”. Este ano perante a vitória de alguns candidatos, envolvidos em jogos de poder e corrupção, o meu pai teria comentado mais uma vez indignado “Não foi para isto que se fez uma revolução, caramba!”

* expressão usada hoje por Jerónimo de Sousa referindo-se ao direito de voto

6 comentários:

  1. Hoje de manhã ouvi um comentarista a fazer um paralelismo entre certos resultados eleitorais e o subdesenvolvimento. Não foi para isto, não. Mas temos de marcar presença, nem que seja presença nula...

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  2. E ainda bem que o teu pai nao viu os resultados eleitorais...

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  3. O que mais asco me mete é o triunfo da corrupção seja à direita à esquerda ou ao centro.. E tens razão, Joana, se o meu pai tivesse visto isto estaria a esta hora ainda mais desiludido...

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  4. Não tem nada a ver, mas queria só vir aqui agradecer "publicamente" a prendinha que lá tinha em casa na 6ª feira!! Adorei, és um amor, L.!
    (recebeste o meu mail?)

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  5. Ora, de nada! Foi só uma lembrancinha. Mereces muito mais que isso.
    Beijinhos muito grandes

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