Hoje quando cheguei à hora do almoço a casa dos meus pais, tinha como sobremesa, não um diospiro, mas um tabuleiro cheiinho deles. Ao contrário de anos anteriores, este ano estavam um pouco mais verdes, mas menos comiscados pelos pássaros. Mais compostos e inteiros, portanto. Não só o meu pai partiu. O jardineiro de há talvez duas décadas a esta parte abandonou o seu cargo devido à vetusta idade. Há mudanças que se vão anunciando de mansinho.
Talvez as mesmas duas décadas menos novo que o meu pai, o sr. A. sempre tomou como dele o nosso jardim e quintal e por assim ser, assumia-se igualmente como guardião do espaço verdejante. Bem cedo, logo pela fresquinha, regava as plantas e demais vegetação, a árvore da borracha que devido a uma ventania descomunal se suicidou sobre as escadas, as hortênsias e a costela de adão, o piri-piri e a sica. Via-o em passo lento fazer várias rondas ao longo do dia. Contava os frutos que cada árvore dava, deixando na mesma um bilhetinho com a estastítica e certa tarde de invernia, quando a minha mãe apressada se foi às nabiças sem cuidado e as cortou sem preceito, o sr. A. bateu-lhe à porta. Vinha indignado "Sabe lá, minha senhora, o que lhe fizeram às nabiças!!!!!!!" a minha mãe conteve o riso e respondeu-lhe no seu jeito despachado e bem disposto "deixe lá, sr. A., fui eu. Estava um frio de rachar e ventania enorme, fui lá apanhá-las para fazer uma sopinha". Mais tranquilo mas inconformado o sr. A. lá desceu as escadas e não mais se falou no assunto das nabiças esventradas no seu querido quintal.
O sr. A. sempre fez o que muito bem entendeu daquele espaço. Ontem mesmo, ao ler A Casa do Rio Vermelho de Zélia Gattai me relembrei desta relação curiosa com o jardineiro. Também Jorge Amado mantinha uma contenda semelhante com o seu.
A hera que cobria as paredes frontais da garagem lá de casa foi acometida de uma síncope fatal certa noite, assim foi relatado, uma vez que um belo dia pela manhã, tinha desaparecido sem mais e as paredes estavam despudoradamente nuas, apenas com uns veios aqui e acolá, vestígios da relação tão íntima com a dita hera. O meu pai ficou desolado. Adorava a hera e detestava as investidas do sr. A. que por sua vez tinha já sugerido que a hera não era lá muito saudável para a parede da garagem, que se calhar era melhor deitá-la abaixo... Nunca vencido e poucas vezes convencido, o meu pai, secundado pela minha mãe, determinara que hera havia de seguir rapioqueira o seu caminho e que eroticamente se entrelaçaria na parede, se assim o entendesse. Nunca foi apurada a falência súbita da trepadeira porém... e o sr. A continuou fazendo as suas rondas e podas. Quando decidiu abandonar o seu ofício ficou pesaroso e triste, sentimentos extensivos a todos nós, afinal não se deixava já determinar se era ele quem fazia parte do jardim ou o jardim que fazia parte dele.
Nos últimos meses, a erva espalhara-se e o desalinho tornava-se evidente, urgindo e surgindo um novo jardineiro lá em casa que com vigor e muito rigor se encarregou de dar um novo rumo ao quintal. A destreza física permite-lhe colher diospiros como nunca antes alguém fizera particularmente no cucuruto do diospireiro e salvá-los da passarada. Acredito que o meu pai se deliciaria este ano mais com os seus diospiros, observaria atento o seu amadurecimento, guardar-me-ia os mais belos e maduros, presentearia os amigos e conhecidos com os restantes, mas comentaria contudo que o jardineiro os tinha apanhado cedo demais e que, provavelmente, não partilhando com o meu pai as suas raízes beirãs pouco entenderia os mistérios dos diospireiros frondosos tão comuns nas suas amadas terras do Dão.
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