Páginas

sexta-feira, 7 de outubro de 2005

O Romeo, Romeo...

Julgo sempre ter havido gatos na casa do meu pai enquanto solteiro, na Beira Alta. De quando em quando, ouvia-o contar a história da Sra. A., uma empregada lá de casa, que um belo dia tinha ido deixar um gato a um descampado bem longe e quando chegou, e isto porque a sra. A. que nunca conheci, era já velhota e coxa, o gato estava lampeiro e triunfante em casa.
Os gatos só regressaram quando eu, nesta saga de vida de saltimbanco a que a profissão que abracei por vezes obriga, fiquei colocada numa terriola distante de casa. Decidi de imediato que, para quebrar a solidão e me alentar os dias, levaria comigo um gato, gato esse que viria a ser–me oferecido pelo aniversário e num dia posterior à data festiva, ao chegar ao meu quarto, me olhava, em cima da cama, meio assustado com um lacito azul à volta do pescoço. Era um gato siamês, tal como manifestado pelo meu desejo e que recebeu o nome de Romeu, por influência de Shakespeare.
À semelhança do herói shakespeariano, Romeu era um gato impetuoso, voluntarioso, rebelde e muito dado ao sexo oposto. Por assim ser, e tal como Romeo, envolvia-se com alguma frequência em brigas com os Capuletos das redondezas e quando regressava, era acarinhado e convenientemente tratado das mais variadas mazelas. Com o tempo tornou-se vingativo e exigente. Incapaz de aguardar um segundo se queria sair, aspergia com os seus fluidos viris as peças de roupa inadvertidamentemente penduradas na cadeira do quarto, a manga de uma camisola ou as pernas das calças.
É sabido que não somos nós quem escolhe os gatos, são eles que proclamam o seu favorito num agregado familiar. O Romeu, embora fosse meu por direito, elegeu o meu pai como seu verdadeiro dono, prestando-lhe assim todas as homenagens e sendo efusivo nas manifestações de carinho e lealdade. Derretia-se em ronrons sonoros, marradinhas ternurentas, passando várias vezes o focinho pelo rosto e instalando-se no seu pescoço ou no colo se o apanhava desprevenido. Curiosamente nunca vi o meu pai tentar apanhá-lo, agarrá-lo ou prendê-lo. Creio ter sido esse o segredo do seu grande sucesso junto dos felinos. Nunca os aprisionava, raramente os chamava e tão-pouco lhes impunha obrigações de cariz afectivo e todos eles lhe saltavam para o colo, acomodando-se de seguida na dobra do braço, ao que o meu pai respondia enternecido com uma ou outra afagadela suave. O amor, tal como a amizade, não se pede nunca, não se mendiga, não se impõe jamais.
O Romeu desapareceu-nos certa tarde de Abril. Estava doente e exausto, vítima da sua própria virilidade destemperada e das eternas assanhadelas com os Capuletos. O meu pai fez um luto silencioso. Todas as tardes porém, abria a porta da rua a pretexto de arejar a casa…
Agora que do meu pai ficou esta ausência, prefiro acreditar que estará algures, tranquilo, com o seu Romeu ronronando-lhe no colo, os dois dormindo enroscados a sesta da eternidade.

4 comentários:

  1. E estarão os 2 na melhor das companhias...

    ResponderEliminar
  2. O gato era mau como as cobras. Um dia estava a dar explicações na sala de jantar e quando reparei havia um cócó plantado no soalho... e o amigo Romeu sabia muito bem qual era o sítio indicado para as suas necessidades. Imagina o meu embaraço. Felizmente o miúdo não viu e assim que acabou a explicação, fui a correr limpar. Mas adorava o meu pai e o meu pai adorava o seu Romeu.
    Beijinhos

    ResponderEliminar
  3. Há gatos tramados... :o)
    Mas eles lá sabem escolher de quem gostam.
    Jinhos grandes

    ResponderEliminar
  4. Fui primeiro atraída pelas fotos do Romeu q me fez lembrar o nosso Tin Tin.Depois fui ler o texto e achei-o lindissimo.Como outros seus q vou lendo de vez em quando, q bem retrata o seu pai! Como deve ter sido difícil a sua partida! Como ele está tão presente!
    Um beijo grande
    Milucha

    ResponderEliminar

Comments are welcome :-)