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sábado, 12 de novembro de 2005

Do baú

Este texto foi repescado entre outros escritos há uns dois anos. O final agrada-me particularmente agora...

Stress
Ele olhou-a de forma peculiar, sem ser recriminadora, com uma acentuada ironia no rosto ao que ela perguntou impelida pela expressão facial “Que foi, papá?” e ele respondeu “olha lá, onde é que aprendeste a escrever stress com um e no fim?” A filha não se ficava facilmente e retorquiu em sua defesa “Pois olha que no Doutoramento do João chamaram-lhe à atenção…“ E o pai, mais persistente que a filha, ripostou “Pois está bem, mas agora digam-me onde é que isso vem, onde foram buscar essa ideia…” Que lhe interessava que fossem professores, doutores ou mesmo professores doutores.
Os seus instrumentos de trabalho eram simples: um lápis ou uma lapiseira, por vezes uma lupa para decifrar caracteres ínfimos, e uma borracha atada a um objecto volumoso, para que não se perdesse, como já tinha acontecido a muitas. E por assim ser, sempre que viajava, a filha presenteava o pai com lápis e borrachas oriundos desses locais, que ostentavam, garbosas, as letras indiciadoras da sua origem. Ás vezes também imagens. O pai ficava sempre muito feliz e a filha também, pensando, exactamente como o pai muitas vezes afirmava em situações análogas “Como é fácil fazer a felicidade de alguém!”
Esta sua profissão tornou-se, de certo modo, uma forma de vida. Por conseguinte, mantinha-se permanentemente alerta. Corrigia inclusive, com o seu lapitos, os folhetos de supermercado ou os rótulos das garrafas. Vezes havia em que se ofereciam como passatempo, “Há aqui uma gralha, vê lá se a descobres…”. Só ele é que as descobria, pois desenvolvera tal perícia, aliada ao conhecimento sólido do qual era um detentor respeitado e aclamado, que apenas ele tinha capacidade para distinguir e identificar o certo do errado numa simples garrafa de azeite.
Quando se ocupava, por exemplo, de uma obra literária, aguçava-se-lhe a sensibilidade e, dando largas ao seu talento, fazia sugestões que extrapolavam a forma dos escritos. O autor ficava surpreendido e muito grato, acatando sempre aquelas alteraçõezitas, “Isto assim não está bem… Não acha, Sr. Fulano de Tal, que fica melhor assim?” Que mais poderia desejar o Sr. Fulano de Tal? Punha-lhe vírgulas, corrigia-lhe os erros e ainda lhe dava uns toques no estilo… A filha retorquia-lhe “Nem sei porque não apareces como co-autor…” O autor Sr. Fulano de Tal agradecia-lhe, agradecia-lhe muito e, quando lhe era oferecida a obra já publicada, podiam ler-se palavras reconhecidas, elogios rasgados, louvores sentidos e também muitas, mas muitas palmadinhas nas costas, que além de co-autor era um ser muito generoso, um benemérito genuíno. Detestava que se usassem galicismos, anglicismos, quaisquer estrangeirismos. Sim, onde é que já se viu chaise-longue? Que pretensiosismo! Vamos lá ser moderados! Assim quando alguém se aventurou a dizer que não-sei-o-quê ou não-sei-quem estava sedeado não-sei-onde, ele questionou humildemente “Olhe que tenho a impressão que essa palavra não existe…”
De dicionário na mão, iniciou-se, naquele momento, uma pesquisa intensa, na busca incessante da palavra. Em vão! Descobriu-se que o último grito dos dicionários, recentemente adquirido, à data do acontecimento, tinha uma falha grave. Faltavam-lhe cadernos inteiros, cadernos INTEIROS e, com eles, tinham-se sumido inúmeros vocábulos, todos os começados por s. Assim, sempre se poupou mais uma tertúlia conturbada e a filha comentou com os seus botões que pena era que, às vezes, não se sumissem mais partes do dicionário…
Tinha igual resistência a neologismos, sendo peremptório no seu juízo final: NÃO EXISTE NA LÍNGUA PORTUGUESA. A filha enfurecia-se “não existe COMO? Então que palavra usas para designar…?” E o pai sempre convicto e resiliente “Ó filha, pões em itálico! Queres ver?” Rodeava-se dos seus canhenhos e manuais da especialidade e, com o lapitos, apontava e lia a explicação. E a filha ripostava “por essa ordem de ideias, ainda falávamos português medieval”, concluindo irónica “Ai, Deus, e u é?”
O pior de tudo foi quando apareceu um Dicionário afamado. Dizia-se conter as últimas actualizações da língua portuguesa. Mas que actualizações? Sim, quais actualizações? Não se deu por vencido, muito pelo contrário, às vezes, dava-se por ele e estava enfurecido. DICIONÁRIO NÃO FAZ LEI, bradava e a última actualização da língua portuguesa tinha sido em 1945 e, para mais, o dicionário não foi homologado, e mais uma vez, lá vinham os seus manuais de consulta, onde constavam, preto no branco, os factos irrefutáveis.
E porque a vida mais não é que uma viagem, a filha imaginava que um dia, sem dia nem local, um dia além, ela e o pai, quando já não partilharem este dia e este tempo, voltarão a encontrar-se nesse dia além. Se puder, leva-lhe revistas, como faz todas as semanas “Papá, tens aqui para ler.” O pai voltará com uma revista na mão “Olha lá, quando partiste já tinham homologado o Dicionário da Academia?” ao que ela responderá “Não. Porquê?” e o pai, categórico como sempre, “Então stress é em itálico. Isto é que são burros! Que mania! E agora tenho que ir que o São Pedro pediu-me para fazer a revisão do boletim celestial e há lá umas alterações que ele tem que ver. Então não é que me quer escrever stress com um e no fim?”

5 comentários:

  1. Gostei muito deste texto e concordo plenamente: Dicionário não faz lei, especialmente o da Academia :P

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  2. Que belo texto! Dá para 'ver' tudo o que descreves. Quanto a 'sedeado', consta daquela 'bíblia sagrada' de todos os revisores, o Prontuário Ortográfico. Lembro-me de ter lá ido ver se se escrevia com 'i' ou com 'e'.

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  3. Oh Ana, que bom apareceres! Pois, eu sei que neste caso, e noutros, que entendes na perfeição... O meu pai gostou muito deste texto também :-)

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  4. Lá consegui linkar as meninas. Já tinha vindo visitar, mas sem dizer nada, por falta de tempo. Ando a ver se arrumo a casa em todos os sentidos e tenho sido muito negligente convosco, mas tentarei compensar.

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  5. Negligente nada, mas sinto a tua falta :)

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