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domingo, 20 de novembro de 2005

Escrita

Repesquei também este texto de uns antigos. Data de quando, sem perceber muito bem como, comecei a escrever. Nessa mesma altura questionavam-me frequentemente a razão da escrita, talvez surpresos pela novidade. O meu querido pai também. Aqui fica:

Isto de escrever vem como um não-sei-quê que me possui. Não sei de onde vem, nem sei para onde me leva.
Vezes há em que tranquila me encontro, com a alma recostada na quietude do quotidiano e o corpo estendido na espreguiçadeira da vida, e repentinamente, como do nada, surgem palavras e ideias, e mais palavras e mais ideias, fundidas com impressões e sentimentos.
Palavras com cores e imagens, cheiros e sons, fragrâncias e sussurros. Palavras que se desenvolvem como se desenvolve a febre, quente e intensa. Surge então em mim uma vontade compulsiva e inevitável de me abeirar de qualquer sítio, usando um qualquer papel e lápis, e soltar a mente e o corpo, que quando solto a mente, liberta-se-me o corpo e sou finalmente livre nos campos em que se desenha minha escrita.
Um dia disseram-me: anda, conta-me, porque escreveste tu este texto? Ter-lhe-ei eu perguntado porque respira? Ter-lhe-ei eu perguntado, porque come, fala, se lhe apetece, e se cala quando lhe convém?
Porque escreves assim, minha filha, que me pareces agora tão plena? De onde vem esse sentir que pões nas palavras? Será de teu tio? Virá de meu pai? Não, não vem. Vem de mim mesmo, pensei, que não me achava parecida ainda que aparentada com os dois ilustres, e não entendia porquê esta minha verborreia inesgotável teria necessariamente de ser herança de qualquer dos dois. Nem do tio, que por via das obrigações e num acto de altruísmo questionável desposou, ainda que no papel, uma sopeira gorda e sebosa, mestre na arte de fazer arroz doce, nem de meu avô, devoto incondicional de minha achacada e desequilibrada avó. Alma sensível, sem dúvida, meu avô, mas para quem os netos se dividiam em dois: os outros e eu. Exactamente por esta ordem.
Escrevo porque escrevo e isso basta-me. Imagino um vaso romano a jorrar néctar translúcido e avermelhado e assim vejo a minha alma, transbordante de letras que formam palavras, que me brotam pelo corpo quando escrevo. O que há em mim? Não sei. Talvez um filho de letras feito, que concebo com amor a cada passo que dou. Isto de escrever, não sei de onde vem, nem sei para onde me leva.

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