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terça-feira, 3 de janeiro de 2006

Momentos luminosos

A C. sentou-se mesmo à frente como sempre faz, do lado esquerdo junto à janela. Chegou já o ano lectivo tinha começado e insistiu veementemente em incluir o Alemão no seu currículo, embora nunca tenha tido a língua na sua terra natal. A espaços, trocamos impressões sobre o dia-a-dia cá neste cantinho. Pergunto-lhe como vão as coisas quase todos os dias. Diz-me que gosta de aqui estar e que não quer voltar para o seu país natal. Tem feito progressos notáveis no desempenho do português, embora maioritariamente falemos em inglês e me socorra também do inglês para lhe explicar expressões em português ou em alemão, língua em que continua com dificuldades. Tem uma voz doce e modos delicados, um rosto redondo e traz muitas vezes consigo a alegria da descoberta e a frescura da adolescência. Lamento que a integração não se tenha dado ainda na sua plenitude, mas gosto de a ter connosco naquele grupinho de alunas que muitas vezes me distrai nos dias negros e discretamente me vai apoiando, aqui e ali, sem grandes conversas. A saudade do meu pai é algo que lhes mantenho distante por motivos óbvios, éticos e outros, também primeiro por achar que a vida privada dos professores assim deve ficar e que a vida da professora, neste caso, é absolutamente irrelevante, desnecessária e supérflua ao contexto de sala de aula, segundo, por estar certa de que se devem manter longe desta mágoa e continuar a viver a sua vida familiar sem o espectro da morte a rondar-lhes os sonhos, caso algum dia o assunto surgisse no horizonte. Apesar de tudo isso, a partida do meu pai não lhes é desconhecida.
Hoje enquanto dava os bons dias, arrumava a tralha, abria os livros e escrevia o sumário no livro de ponto, a C. perguntou-me em inglês, baixinho, vindo do nada, Teacher, are you sad? Fui apanhada de surpresa e não tendo como princípio mentir aos meus alunos, confirmei-lhe que sim, questionando-a de seguida como sabia ela tal coisa. Respondeu-me de novo em inglês que era muito sensible, expliquei-lhe que era talvez sensitive, ela concordou e reiterou que por isso se apercebia de quando as pessoas tinham consigo a tristeza. Iniciámos a aula, com a ligeireza habitual, não obstante, e noventa minutos depois, ao sair a C. chegou-se perto de mim e disse baixinho Don´t be sad, setorinha! e debandou com o seu sorriso, despedindo-se até à próxima aula.
Mesmo escarnecidos pela opinião pública, mal tratados por governos e políticos, desacreditados e ofendidos pelos pais, continuo feliz por ter escolhido ser professora, opção à qual os meus pais não são alheios, e por sentir que nesta profissão a satisfação tem mais a ver com momentos de pura ternura como este do que a quantidade de euros depositada na conta bancária cada final de mês.

4 comentários:

  1. Hoje ja me fizeste sorrir com ternura! Ves...o dia comecou bem (o meu, que o teu agora termina!)
    Beijocas

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  2. Beijocas! Ainda bem que te fiz sorrir... E Bom dia!!!!!!!!!!!

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  3. História linda! É tão bom quando o nosso trabalho é gratificante :-)

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  4. Grande C.
    E são momentos destes que elevam o nosso dia...
    Bjos

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