Pois naquele dia de Janeiro o H. chegou a casa já ao entardecer. Vinha carregado de coisas, nem me lembro exactamente com quê, apenas a imagem dele afobado a entrar pela casa dentro, empurrado pela invernia acutilante e obstinada. Deitou o correio para cima da mesa e disse apenas está aí uma viagem a Nova Iorque para concorreres… e dito isto debandou para a cozinha, onde abandonou os carregos e arremessou a canseira do dia de trabalho, pesado, denso, húmido e cinzento. Nesse tempo morávamos numa casa feita de humidade e frio e, por assim ser, e mais não aguentarmos, uma bela noite de Novembro decidimos dali sair. Um mês depois fazíamos a promessa de compra e venda desta e dois meses depois fechámos com felicidade a porta desse capítulo recheado de invernia. A cusca, a senhoria, uma saloia cilíndrica, tisnada e intrometida, ficara para trás com as suas casas de aluguer, o seu vastíssimo património, o seu filho encalhado e as vidas alheias de vizinhos, não-vizinhos e outras criaturas mundanas do reino vegetal e animal para espiolhar. E dessa data passam hoje, precisamente hoje, três anos recheados de vivências temperadas com ternura e salpicadas de inevitáveis mágoas e desprazeres esporádicos.
Mas isto foi antes e, visto que partir sempre foi um chamamento, agarrei num papel e num lápis naquele mesmo instante e rabisquei umas quantas quadras, sem poesia nem formosura, apenas rima e os requisitos exigidos: o nome da loja, um produto da dita loja e o destino. O H. encarregou-se de enviar as mensagens. Queixou-se de que lhe doíam os dedos. Argumentou que estava já cansado de tanto escrever. Tanta rima, tanta palavra. Ameacei-o sem demora que caso ganhasse a viagem o deixaria em terra, atitude pouco cristã, em total discordância com o que proferi no altar, cumprindo, não obstante o regulamento de divisão de tarefas. Eu escrevo, tu envias. Não é por acaso o casamento a partilha de uma vida, a divisão de tarefas, a distribuição de papéis? Tal nos havia sido ridiculamente doutrinado naquele Centro de Preparação para o Matrimónio, um dos acontecimentos mais patéticos e constrangedores em que algum dia participei, logo na alvorada do século XXI e que faria o orgulho de um qualquer Ratzinger. Perdoai-lhes, Senhor.
Umas duas semanas depois, quando a casa mais não era do que um amontoado de caixas, móveis, livros, bibelots e demais traquitanas e tralhas empilhadas por ordem de saída, também elas desejosas de abandonar para sempre aquela casa com vista para o vento, o telemóvel do H. tocou e, nos despojos da ventania, o H. disse Toma, é para ti. Pela apresentação da parte de quem vinham fez-se imediatamente luz ao que vinham e foi então que ao som do Vamos fugir desse lugar... do Gilberto Gil se juntou the Voice cantarolando Start spreading the news…
Mas isto foi antes e, visto que partir sempre foi um chamamento, agarrei num papel e num lápis naquele mesmo instante e rabisquei umas quantas quadras, sem poesia nem formosura, apenas rima e os requisitos exigidos: o nome da loja, um produto da dita loja e o destino. O H. encarregou-se de enviar as mensagens. Queixou-se de que lhe doíam os dedos. Argumentou que estava já cansado de tanto escrever. Tanta rima, tanta palavra. Ameacei-o sem demora que caso ganhasse a viagem o deixaria em terra, atitude pouco cristã, em total discordância com o que proferi no altar, cumprindo, não obstante o regulamento de divisão de tarefas. Eu escrevo, tu envias. Não é por acaso o casamento a partilha de uma vida, a divisão de tarefas, a distribuição de papéis? Tal nos havia sido ridiculamente doutrinado naquele Centro de Preparação para o Matrimónio, um dos acontecimentos mais patéticos e constrangedores em que algum dia participei, logo na alvorada do século XXI e que faria o orgulho de um qualquer Ratzinger. Perdoai-lhes, Senhor.
Umas duas semanas depois, quando a casa mais não era do que um amontoado de caixas, móveis, livros, bibelots e demais traquitanas e tralhas empilhadas por ordem de saída, também elas desejosas de abandonar para sempre aquela casa com vista para o vento, o telemóvel do H. tocou e, nos despojos da ventania, o H. disse Toma, é para ti. Pela apresentação da parte de quem vinham fez-se imediatamente luz ao que vinham e foi então que ao som do Vamos fugir desse lugar... do Gilberto Gil se juntou the Voice cantarolando Start spreading the news…
:o)
ResponderEliminarÉ tão bom sorrir contigo...
Parabéns pelos 3 aninhos na casa nova. Espero estar eu com um post deste género a 28 de Janeiro de 2009...
QUe bom!!! Aproveitem bem, e já sabes.... ai de vcs que não mandem um postal!! :-)) lolololol
ResponderEliminarUm beijo imenso!
Isto já foi há três anos! Nunca mais ganhei viagem nenhuma, mas dessa vez até fomos às Cataratas do Niagara :))
ResponderEliminarSó para acrescentar que a foto foi tirada nessa altura.
ResponderEliminarAhhh Não queriam mais nada, não? sortudos!!!!
ResponderEliminarQueríamos pois ;-)
ResponderEliminarOlha que tu tens ca uma piadinha:
ResponderEliminar"agarrei num papel e num lápis naquele mesmo instante e rabisquei umas quantas quadras, sem poesia nem formosura, apenas rima e os requisitos exigidos: o nome da loja, um produto da dita loja e o destino."
E dizes isto assim, pronto, com esta ligeireza...achas bem??
Quem me dera! Para mim escrever e e sempre foi uma luta, terrivel, e nunca sai nada de jeito!
E so me lancei a escrever o blog, porque e mesmo como la digo, e a maneira mais rapida de chegar ate vos, o que de outra maneira seria impossivel! Adorava, adorava saber e ter facilidade em escrever... Es uma sortuda L.!
Mas foi verdade, P.!!!! E digo isto sem falsa modéstia. Foi um grande golpe de sorte mesmo :))
ResponderEliminarTu não sabes escrever????????? Ó mulher, o cafezinho português está mesmo a fazer-te falta!!!!!!!!!!
ResponderEliminarO que fez vocês ganharem a viagem não conheci, mas esse texto está maravilhosamente bem escrito. E adorei as trilhas sonoras. Bjos
ResponderEliminarObrigada, Gláucia. Foi uma quadra meio sem graça, foi pura sorte mesmo. Quando encontrar a quadra ponho aqui. Bjs
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