E porque hoje revi esta minha amiga, fui vasculhar o baú mais uma vez:
Como é bom encontrarmo-nos no jardim e deixarmos que o sol da tarde nos acaricie os rostos marcados pelo tempo. Encontrámo-nos por acaso nestas tardes soalheiras que me iluminam a alma e acalmam os dias inquietos. Estavas no jardim quando passei. Tranquila, com o teu passo lento, brincando com uma flor, a mais bela de teu jardim, a primeira que de ti floriu, um dia se fará árvore e dará frutos e esses serão também teus frutos.
Reparei então como sempre estiveste no jardim da minha vida. As duas, parecidas nas formas arredondadas e volumosas dos corpos, pequenas na estatura, com cabelos e olhos cor de noite, irmãs nas maleitas da alma, que eu aligeirava com perguntas inversamente proporcionais aos nossos males de espírito “Então o Pedrito? Continua bom?” perguntava “Continua!” respondias. “E ainda tem a caixa de óculos do Tintim? E a agenda do Tintim?” perguntava eu. “Vês cada coisa, mulher!” dizias e eu, que sempre me achei aparentada do Mr. Magoo, ria-me descontraída. Contavas as aventuras dos teus filhos e a conversa oscilava entre composições e flubbers, substâncias viscosas semelhantes a excreções repugnantes, mas que faziam a felicidade das crianças e nós aceitávamos o estranho prazer do contacto com o brinquedo em voga. A conversa era interrompida a espaços, ora com risadas, ora com admoestações do teu olhar sempre atento e vigilante.
Quando te ris, porque eu fugia das bolas nas aulas de meu tormento, há muita partilha e cumplicidade e sinto-me então feliz porque se de mim te ris é porque de mim te lembras e me guardas na caixinha das memórias passadas. Recordo o dia em que se te foi o salto da bota por te teres largado, desabrida, a correr, no fulgor da juventude e de quem mais não queria do que sentir o cabelo ao vento e a velocidade no rosto. Assalta-me a memória o dia em que serias a mais olhada e a mais bela. Encerravas um ciclo de tua vida e iniciavas outro. Julgaram, porém, que nesse dia, exactamente nesse dia feliz, terias dois braços direitos ou esquerdos, já nem sei, que me falha a memória também. E foi assim que te mandaram, lindas, envoltas em papel de seda, como teu vestido alvo, duas luvas do mesmo braço. “Não chores, minha filha que se te borra a maquilhagem”, tranquilizou-te a minha mãe, ajeitando-te o rosto, a empurrar-te as lágrimas. E éramos muitas mulheres, mães e irmãs, e não choraste.
Diz-se que Deus disse “em dor parirás teus filhos” e tu bem sabes que é verdade, que de ser mãe, sei somente o que me contam. Por isso, quando penso em como se te rasgou o ser ao parir teus filhos, sofro contigo um pouco também. E quando sobrepões a felicidade de os ver rir, brincar, crescer, aos momentos longos e sofridos da sua chegada, apetece-me oferecer-te não um bouquet de flores, mas um jardim inteiro.
Muito bonito L.! E bom ter amigos assim!
ResponderEliminarÉ minha amiga desde os tempos de liceu. Tenho um enorme carinho por ela. :)
ResponderEliminarQue coisa mais linda! Tu estás proibida de parar de escrever. É bom demais ter amigas assim, não é? É uma dádiva. Como ler textos assim, tão inspirados e verdadeiros.
ResponderEliminarEstou comovida, Glau! Um beijo grande :)
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