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segunda-feira, 13 de fevereiro de 2006

Teimosias

A minha mãe tinha ido para a cozinha, julgo estarmos pela hora do almoço e enquanto ela se afastou, provavelmente por imperativo de algum afazer doméstico, o meu querido pai disse-me num tom confessional uma coisa que tenho notado na tua mãe agora com a idade é que ela está teimosita… Vinha isto a propósito não sei de quê, julgo mesmo que a teimosia teria sido entre mim a minha mãe sobre um qualquer assunto comezinho do quotidiano mas o que me pareceu mais curioso foi precisamente o meu pai, logo ele acima de todas as pessoas, achar que era a minha mãe que estava teimosita. O meu querido pai era um teimoso irredutível, obstinado e convicto, e muito raramente, em anos bissextos talvez, dava o braço a torcer. Por isso me deu um prazer enorme esta vitória, visto não estar mal servida de convicções fortes eu própria. Sei que se o meu querido pai em algum lado estiver, estará a sorrir-se com os olhitos meio fechados, um olhar malandro e num silêncio eloquente ou a dizer hmm, nem por isso… com a ironia de sempre. Na verdade, sempre admirei os meus pais por não discutirem e por ao longo destes quarenta anos não ter nunca ouvido uma única palavra desrespeitosa por parte de algum deles. As opiniões não coincidiam sobre livros, cinema ou teatro ou outros assuntos com muita frequência, não obstante. Eu penso assim, tu pensas assado e assim ficavam com opiniões divergentes mas logo encontrando o caminho convergente da sua vida, sem beliscadura nem mácula. Sei que por vezes o meu pai tinha vontade de abandonar o cinema ou o teatro caso a peça ou filme não lhe agradasse, algo que a minha querida mãe seria e é incapaz de fazer e algo, de resto, que o meu pai também não fez. Lembro-me das risadas por ter aguentado estoicamente as Valquírias de Wagner ou uma temporada inteira de ballet.
Agora começo a pensar que o meu pai acabava por ter a sua razão. Desde que partiu, a minha querida mãe agarrou-se ao luto e luto tem vestido desde esse dia ou o dia seguinte. Ocasionalmente misturado com cinzentos. Nunca fugindo a uma paleta de cores sombria e pesada, no entanto. Relembro-a amiúde que o meu pai detestava preto e que várias vezes disse que quando morresse que vestíssemos vermelho, desejo, como é óbvio, não respeitado pela hipérbole. Um destes dias frios a minha mãe usou por casa um poncho beige e numa outra ocasião uma écharpe lilás. O rosto encheu-se-lhe de luz. Digo-lhe Mamã, o Papá detestava preto. Mamã, o Papá adorava ver-te de branco. Mamã, o preto é viciante. Mamã, pareces uma mulher antiga e o Papá que nem era nada dessas coisas… Pois sim. Que lhe apetece assim, que vai começar a vestir outras cores, que sim e mais que também mas enquanto isso o preto domina o seu vestuário e ela continua obedecendo como sempre fez à força do seu carácter, fiel às suas convicções, determinada nas suas atitudes. Como sei que costuma vir aqui espreitar, pode ser que a minha querida mãe se lembre dos dias em que vestia outras cores que tão bem lhe ficam, que o meu pai odiaria vê-la de preto e que eu tenho saudades de a ver sem a negritude dos últimos meses. O meu pai lá tinha a sua razão, Teimosita.

5 comentários:

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  2. :))
    Dá-lhe mais um tempo...mas não te cales... que ao teimositos, temos de os lembrar mais vezes;))
    Beijinhos para a filha e para a mãe!

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  3. Ora bem, quase todos os dias lá vem a conversa... Afinal com uns genes destes também não me deixo ficar :)

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  4. :o)
    Eu também sou "contra" o preto, que não é a cor que vestimos que transmite o sentimento que vai cá dentro. Mas se é assim que ela se sente bem, isso é o mais importante. De qualquer modo, concordo com a Patricia, tens de a ir lembrando e realmente com esses genes, não duvido que o faças! :op
    Beijos grandes.

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  5. Mais uma vez me trouxeste aos olhos lágrimas bailarinas.

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