E porque hoje é dia da Mulher lembrei-me deste texto muito prosaico, apenas mais um do baú:
A rapariga não tinha casado cedo para os padrões convencionados. Primeiro, porque nunca antes se tinha cruzado com alguém com quem fosse capaz de partilhar a cinzentude do quotidiano, segundo, porque se achava incapaz de suportar a rotina do dia-a-dia, dividida entre detergentes e branqueadores, tachos e panelas, terceiro, e também pelas razões já apresentadas, o mundo era imenso, grande e vasto, e estava à sua espera para ser redescoberto. Vislumbrava sem esforço algum uma imensa panóplia de actividades mais interessantes, mais criativas, mais produtivas do que as desgastantes tarefas domésticas, que apenas desperdiçando tempo, nada de profícuo e extraordinário produzem.
Será que imaginam as horas perdidas na arrumação de tralhas, atoalhados e toalhas, na selecção e triagem de jornais e suplementos, revistas e panfletos? Nas lavagens sucessivas e infindáveis de roupa? Os minutos preciosos desperdiçados à procura da meia condizente com a desirmanada que sobrou? Há sempre uma que sobra, uma que falta, até parece que a máquina da roupa as esconde de propósito, para as mostrar na lavagem seguinte, triunfante Era esta que procuravas? Imaginam os momentos esbanjados a dobrar boxeurs, cuequinhas, tangas e soutiens e outras peças que, quando vestidas, fazem as delícias de tanto quem as veste como quem as contempla, mas uma vez despidas, se metamorfoseiam em cargas de trabalho entediante?
Primeiro separar por cores: brancos só lavam com brancos, vermelhos só com outros tons análogos – carmins, cerises, encarnados, talvez fúchsia, bordeaux –, depois uma máquina de gangas: calças de ganga, vestidos de ganga, tops de ganga e ainda a compra de detergentes antidebotantes e mais uma pastilha anti-calcário a rematar. De seguida, pendurar! Tudo do avesso que o sol come as cores e todos sabemos do buraco do ozono, e por fim, apanhar e ainda dobrar, arrumar e, caso necessário, o recurso ao indispensável ferro de passar. Quantas, mas quantas coisas aprazíveis, poderiam ser feitas neste mesmo tempo de negregura doméstica, de escravidão caseira, de subjugação servil? Quantos momentos de lazer, quantos livros lidos?
E a rapariga, que suspeitava de tudo isto, manteve-se tranquila até ceder aos desígnios de Cupido e consequentemente ser arrastada pela fome voraz das tarefas domésticas e assim amontoaram-se os momentos, multiplicaram-se os minutos, somaram-se as horas com a roupa, com a louça, com a arrumação. E se, ao recostar-se no sofá, avistava um novelito de cotão, adoptava duas atitudes: ou o ignorava ou agarrava na vassoura ou no aspirador, fazendo sumir o dito. Regra geral, adoptava a segunda atitude. Aparecia outro cotãozito mais ou um lixito ainda, como se a presença dos referidos instrumentos de limpeza só por isso, apenas por se apresentar nos locais a limpar, produzisse mais pó, mais lixo, o esterco reproduzir-se, e lá ia mais uma aspiradela, mais uma varredela. De modo que, quando o consorte regressava ao lar, a rapariga estava à beira da cólera. Maldizia veementemente a sua vida de acessório doméstico e praguejar surgia-lhe como uma hipótese plausível lavei a p?#@%& da roupa. Só havia m#§@& por baixo do sofá e os c%#@»!?* dos jornais já se podem levar para reciclar.
Certo é que a rapariga gostava da casa e preferia ser ela, contraditoriamente, a lavar a sua roupa do que prescindir dessa tarefa, que a nossa roupa é a nossa intimidade também e quem a conhece exerce um poder perverso sobre nós. Cada estendal conta a história da família a que pertence, desvelando despudoradamente a sua privacidade, as suas preferências e, quem estende a sua roupa para a rua, oferece-se sem rodeios aos demais transeuntes e vizinhos. Uma nudez preocupante, essa: Olha ali! Já viste a cinta da D. Aurélia? Ainda é pior que os slips tigresse do Sr. Simplício…! Quando o encontrei na escada só conseguia pensar nisso. Já para não falar nas toalhas encardidas da D. Francelina… Uma badalhoca é o que ela é! Cada prédio suburbano salpicado de estendais desavergonhados é uma história a ser contada, um livro à espera de ser escrito.
Amiúde decorava a casa com flores e um belo dia comprou um rotundo molho de gerbérias áureas e luminosas, ofereceu-lhes um lugar de destaque e, qual Pigmalião, contemplou embevecida a combinação algo extravagante, paradoxalmente harmoniosa, das flores douradas com os ramos indomáveis do eucalipto, a única verdura existente na loja. O consorte, ao ser questionado retoricamente sobre a beleza das flores, respondeu beneplácito São lindas, paixão! Tão lindas como as gerbérias de Van Gogh! E a rapariga sorriu, feliz, esquecendo as meias, as cuecas, os detergentes, os branqueadores e as toalhitas, o esterco por baixo do sofá, as pastilhas anti-calcário, os jornais e garrafas para reciclar. Afinal não é todos os dias que se é comparado a um génio, mesmo que este não tenha nunca pintado gerbérias.
A rapariga não tinha casado cedo para os padrões convencionados. Primeiro, porque nunca antes se tinha cruzado com alguém com quem fosse capaz de partilhar a cinzentude do quotidiano, segundo, porque se achava incapaz de suportar a rotina do dia-a-dia, dividida entre detergentes e branqueadores, tachos e panelas, terceiro, e também pelas razões já apresentadas, o mundo era imenso, grande e vasto, e estava à sua espera para ser redescoberto. Vislumbrava sem esforço algum uma imensa panóplia de actividades mais interessantes, mais criativas, mais produtivas do que as desgastantes tarefas domésticas, que apenas desperdiçando tempo, nada de profícuo e extraordinário produzem.
Será que imaginam as horas perdidas na arrumação de tralhas, atoalhados e toalhas, na selecção e triagem de jornais e suplementos, revistas e panfletos? Nas lavagens sucessivas e infindáveis de roupa? Os minutos preciosos desperdiçados à procura da meia condizente com a desirmanada que sobrou? Há sempre uma que sobra, uma que falta, até parece que a máquina da roupa as esconde de propósito, para as mostrar na lavagem seguinte, triunfante Era esta que procuravas? Imaginam os momentos esbanjados a dobrar boxeurs, cuequinhas, tangas e soutiens e outras peças que, quando vestidas, fazem as delícias de tanto quem as veste como quem as contempla, mas uma vez despidas, se metamorfoseiam em cargas de trabalho entediante?
Primeiro separar por cores: brancos só lavam com brancos, vermelhos só com outros tons análogos – carmins, cerises, encarnados, talvez fúchsia, bordeaux –, depois uma máquina de gangas: calças de ganga, vestidos de ganga, tops de ganga e ainda a compra de detergentes antidebotantes e mais uma pastilha anti-calcário a rematar. De seguida, pendurar! Tudo do avesso que o sol come as cores e todos sabemos do buraco do ozono, e por fim, apanhar e ainda dobrar, arrumar e, caso necessário, o recurso ao indispensável ferro de passar. Quantas, mas quantas coisas aprazíveis, poderiam ser feitas neste mesmo tempo de negregura doméstica, de escravidão caseira, de subjugação servil? Quantos momentos de lazer, quantos livros lidos?
E a rapariga, que suspeitava de tudo isto, manteve-se tranquila até ceder aos desígnios de Cupido e consequentemente ser arrastada pela fome voraz das tarefas domésticas e assim amontoaram-se os momentos, multiplicaram-se os minutos, somaram-se as horas com a roupa, com a louça, com a arrumação. E se, ao recostar-se no sofá, avistava um novelito de cotão, adoptava duas atitudes: ou o ignorava ou agarrava na vassoura ou no aspirador, fazendo sumir o dito. Regra geral, adoptava a segunda atitude. Aparecia outro cotãozito mais ou um lixito ainda, como se a presença dos referidos instrumentos de limpeza só por isso, apenas por se apresentar nos locais a limpar, produzisse mais pó, mais lixo, o esterco reproduzir-se, e lá ia mais uma aspiradela, mais uma varredela. De modo que, quando o consorte regressava ao lar, a rapariga estava à beira da cólera. Maldizia veementemente a sua vida de acessório doméstico e praguejar surgia-lhe como uma hipótese plausível lavei a p?#@%& da roupa. Só havia m#§@& por baixo do sofá e os c%#@»!?* dos jornais já se podem levar para reciclar.
Certo é que a rapariga gostava da casa e preferia ser ela, contraditoriamente, a lavar a sua roupa do que prescindir dessa tarefa, que a nossa roupa é a nossa intimidade também e quem a conhece exerce um poder perverso sobre nós. Cada estendal conta a história da família a que pertence, desvelando despudoradamente a sua privacidade, as suas preferências e, quem estende a sua roupa para a rua, oferece-se sem rodeios aos demais transeuntes e vizinhos. Uma nudez preocupante, essa: Olha ali! Já viste a cinta da D. Aurélia? Ainda é pior que os slips tigresse do Sr. Simplício…! Quando o encontrei na escada só conseguia pensar nisso. Já para não falar nas toalhas encardidas da D. Francelina… Uma badalhoca é o que ela é! Cada prédio suburbano salpicado de estendais desavergonhados é uma história a ser contada, um livro à espera de ser escrito.
Amiúde decorava a casa com flores e um belo dia comprou um rotundo molho de gerbérias áureas e luminosas, ofereceu-lhes um lugar de destaque e, qual Pigmalião, contemplou embevecida a combinação algo extravagante, paradoxalmente harmoniosa, das flores douradas com os ramos indomáveis do eucalipto, a única verdura existente na loja. O consorte, ao ser questionado retoricamente sobre a beleza das flores, respondeu beneplácito São lindas, paixão! Tão lindas como as gerbérias de Van Gogh! E a rapariga sorriu, feliz, esquecendo as meias, as cuecas, os detergentes, os branqueadores e as toalhitas, o esterco por baixo do sofá, as pastilhas anti-calcário, os jornais e garrafas para reciclar. Afinal não é todos os dias que se é comparado a um génio, mesmo que este não tenha nunca pintado gerbérias.
Há coisas assim, mesmo que sejam de "gaja" :o)
ResponderEliminarBaci :o)
:)
ResponderEliminarFartei-me de rir com o teu texto. Tem muito de verdade!
Fico contente. É p+ra compensar os outros mais tristes :))
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