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terça-feira, 25 de abril de 2006

Abril

Há quem queira ter vivido noutros tempos e noutras paragens. Pois eu, que valorizo acima de muitas coisas o prazer de ser livre, regozijo-me por ter tido a oportunidade de presenciar a libertação do meu país, de modo que o ser agora menos jovem é o tesouro mais valioso do meu ser português. Foi em Abril, como se sabe. O dia estava cinzento e chuvoso. A minha mãe corria pela casa bem cedo ainda em camisa de noite, agitada e feliz, pela boa nova: a liberdade estava a chegar por aqui, por ali e eu, pequena perante a imensidão do momento, assistia ao virar dessa página da nossa história sem que muito bem o entendesse, contudo. Só o futuro nos ajudará a entender a amplitude do passado. Não houve escola nesse dia, fiquei em casa, portanto, com os meus pais e a minha avó, ouvindo a voz grave de Luís Filipe Costa Aqui posto de comando das Forças Armadas e seguindo atentamente a chegada da tão esperada liberdade, comentada em surdina em conversas passadas dos meus pais. Daqueles momentos guardo o alvoroço da minha mãe, a expectativa de um devir livre e ensolarado, sem palavras proibidas, um entusiasmo pela nova era. A mudança anunciava-se incontida.
Portugal era como um livro de colorir. A preto e branco, como todos os livros de colorir. Apenas com contornos desenhados à espera de ser colorido, como todos os livros de colorir. E como se cada um com seu lápis de cor tivesse colorido sua parte, cada espaço em branco desde tempos imemoriais era finalmente preenchido com as cores do prazer libertador. E assim se coloriu meu país e as cores eram muitas, de todos os arco-íris do mundo, e todos falavam e riam e as ruas encheram-se de gente e a gente trazia mais gente que trazia flores, rubras e exuberantes de pétalas como folhos atadas a um caule verde esperança. Havia música no ar. Música cantando a recém-nascida liberdade deste país. O sussurrar dava lugar ao gritar. No ar pairavam cânticos e palavras agitadas como imensas bandeiras coloridas. E surgiram mais palavras, palavras novas, existentes até então em vocabulários escondidos, guardados nos confins da clandestinidade e que agora se podiam pronunciar alto. Palavras belas como liberdade e igualdade. Palavras feias como fascismo e repressão. Todas elas finalmente permitidas e pronunciáveis à luz do sol. No meu país já não havia palavras proibidas.
Abril chegou de novo, distante no tempo daquele Abril de 74, sempre perto no meu sentir e vívido na memória, não obstante, e ritualmente comemorado pela minha mãe com um ramo de cravos vermelhos, agora também vibrantes na última morada do meu querido pai.

imagem: Vieira da Silva

4 comentários:

  1. Que post lindo e bem escrito! Como gosto do teu texto, uia. Muitos cravos nesse dia de felicidade portuguesa que minha alma brasileira reconhece e admira.
    Um abraço,

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  2. Ahh, que bom reviver Abril! Sempre! Eu já estava na ilha. Também foi vibrante por cá - finalmente a possibilidade de autonomia! mas faltou-me estar no 1º de Maio, logo a seguir, com o meu pai , entusiasmado e comovido, na Alameda .Um beijo da Milucha que, ao reencontrar a sua mãe, reencontrou-a a si,que bom!- e uma saudade imensa do seu pai...

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  3. Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

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  4. Que emoção recebê-la aqui, Milucha! E que saudade também dos seus pais... Um beijo grande

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