Diz-se que há males que vêm por bem.
Não sou adepta desta premissa. Tenho uma dificuldade imensa em encontrar bem algum nos males que foram assolando ao longo dos tempos, sendo o mesmo válido para a costumeira conversa de que o que não nos mata torna-nos mais fortes, que nas adversidades é que crescemos e por aí fora. Ficaria bem mais feliz ignorante, insciente dessas capacidades ocultas, descobertas apenas face aos contratempos. De que me servirá afinal conhecer os meus limites? Demarcar as fronteiras da sanidade? Marcar os limiares da dor? As cicatrizes perdurarão quando as feridas sararem.
Atrevo-me, no entanto, a considerar que este mal inicial, menor diga-se em abono da verdade, acabou por se transformar mesmo numa mais-valia. Caso naquele Agosto de 1998 tivesse apanhado o voo directo de Munique para Lisboa sem uma escala de seis horas em Zurique, ter-me-ia passado ao lado, melhor dizendo eu teria passado literalmente por cima do acontecimento. Assim não foi. Depois de envidados todos os esforços para conseguir um voo mais cedo, não tive mais remédio senão conformar-me. Ajudou-me também o facto de ter este vício de levar o passaporte sempre que viajo, mesmo na União Europeia, à excepção de Espanha. No aeroporto, após mais uma tentativa infértil, questionaram-me Tem o passaporte? Então vá à cidade que há lá uma festa. Pensei pois Sim… lá estão eles a beber cerveja e a comer salsichas… mas entre ver os suíços, na minha mente associados sem piedade aos alemães, e ficar seis horas arrastando o rabo pelas incómodas cadeiras do aeroporto, depois de ter feito pelo menos três rondas e visitas em cada loja, ter já fixado preços e localização dos items expostos, olhar o relógio centenas de vezes na esperança que o tempo fugisse e as seis horas se transformassem em seis fugazes minutos, e testemunhar o divertimento alheio, entre cervejas e salsichas, escolhi o segundo, dificilmente pararei se puder partir, e apanhei o comboio rumo à cidade, grata por ter o passaporte comigo.
Na estação tinha o anjo a acolher-me pendurado das alturas, como convém aos alados seres etéreos, embora a singularidade das cores e volúpia das formas sacudisse o estereótipo do querubim assexuado. Pela cidade espalhava-se uma multidão exuberante de cabelos fluorescentes e plumas, abanando-se ao som de música tecno, os corpos brilhantes pelo calor exsudado no estio helvético. Criaturas andróginas ondulavam os corpos em cima de trios eléctricos e eu, vestida apenas de mim própria, pasmei na extravagância do Street Parade, onde tinha ido parar por mero acaso, pura coincidência e agradeci secretamente a quem me encaminhou para a cidade povoada de vacas exuberantes como a própria urbe em êxtase. As seis horas voaram pois e deste episódio não me resta senão a memória: a máquina fotográfica dentro da mala, perdida nalgum hangar, e eu só, acompanhada da minha própria solidão. A linguagem inútil na ausência de destinatário. Nem uma alma para partilhar o momento, alguém com quem trocar uma opinião, um outro a meu lado que comigo palmilhasse a fantasia da cidade. Palavras, pois, palavras escritas me restam apenas contra a inconstância da memória.
imagem: Cowparade, Zurique, 1998
Palavras e memoria, pois entao! `E quanto basta!
ResponderEliminarBeijocas, e podes ir comecando a encomendar o panito com chourico!
É para já :)))
ResponderEliminarTambém visitei Zurique assim. Um stop-over de muitas horas, de regresso da Rep. Checa. E adorei!
ResponderEliminarAliás, não dava para ficar mais tempo! Os preços são absolutamente proibitivos.
Nem me lembro dos preços... foi mesmo uma surpresa mas gostei muito também.
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