Páginas

segunda-feira, 10 de abril de 2006

Mar

E porque hoje só consigo pensar além mar, aqui fica o último capítulo de uma novela minha encafuada na gaveta:

Todos os dias cumpria o mesmo ritual. Levantava-se estremunhada e, sacudindo fantasmas e angústias dos sonhos nocturnos que lhe povoavam o dormir, descia as escadas e dirigia-se à cozinha. Espreguiçava-se e bocejava, um bocejo grande e revigorante, de seguida, puxava o estore e procurava, entre a névoa do sono e a aurora do acordar, a tarja de mar ao fundo na paisagem. Os fantasmas desapareciam.
Uns dias, era imensa e azul a linha desenhada no horizonte, outras apenas uma risca cinzenta e outras ainda uma pequena tarja prateada. Dias havia em que o sol reflectia na água a sua grandeza e esplendor. Eva observava, atenta, a mescla das cores, maldizendo a sua inaptidão para transpor em arte o cenário observado. Quando contava o mar que vira, muitos a descriam, não que o verbalizassem, ela entendia pelo olhar. Mas que via o mar da sua casa, via, e que esse mar lhe tornava a existência mais feliz, era um facto insofismável.
Uma ocasião, quando dava um passeio virtual no espaço cibernético, alguém perguntou o que cada um tocava pela manhã, a rapariga respondeu que tocava a orla de mar da janela da cozinha e um qualquer rapaz, sem rosto nem nome, concordou que havia de ser belo esse ver, esse tactear matinal. Acreditava na rapariga.
Porque lhe era o mar tão caro, questionava-se com frequência. Sim, porquê? Entre a quietude da aldeia, feita de silêncios, entrecortados com o cantar dos melros e o chilrear dos pardais, e o bulício da urbe, feita de ruídos e vozes, interrompidos por silêncios inaudíveis, havia um caminho de água, imenso e brilhante que levava a outras aldeias e a outras urbes, outros oceanos até. Às vezes fixava o olhar e julgava ver alguém acenando, do outro lado do mar… do outro lado do mundo?
Era Primavera de novo. E a rapariga virou-se para o rapaz e disse “Vês, que lindo que é…”. Saíram pela porta da cozinha e, no horizonte, desenhava-se uma enorme esfera incandescente, laranja e avermelhada, que descia paulatina até beijar o mar, ao longe, tranquilo e belo, pronto para o acolher no seu ventre. Pareceu-lhe ver outra vez o aceno… E do quintal tudo era tão pleno. E a rapariga virou-se para o rapaz e disse “Vês o mar na minha aldeia, que lindo que é"


in O Mar na Minha Aldeia

Também com o pensamento neste além mar.

2 comentários:

  1. Singelo e elegante. Fiquei com vontade de ler o que vem antes desse final lindo.
    Bjs

    ResponderEliminar
  2. É uma novela pequena, mas claro não publicada. O mais longe que fui foi ter uma menção honrosa num Prémio Literário com uma colectânea de contos de viagem. Bjs

    ResponderEliminar

Comments are welcome :-)