Para a minha querida mãe
Lux? perguntaste tu. Lux, como o sabonete? Era dia de semana, azul e luminoso, e passeávamos pela cidade de meu coração, a cidade que amo acima de todas, porque lá fala-se a minha língua e a minha língua é a minha Pátria, como Pessoa, Pessoa de quem tanto gosto, afirmou. O caos é ele próprio uma forma de vida e cidade alguma consegue mimar-nos como Lisboa, com a luz de Lisboa. A primeira luz que vi, a primeira cor do mundo foi a cor de Lisboa e a última cor que verei, será a de Lisboa também?
Cidade branca, cidade cinzenta, cidade azul, pintada de cores e humores, caprichosa e voluntariosa, paciente e terna. Como línguas, as ruas alongam-se até ao rio. Há carros, sempre carros e camionetas e comboios e eléctricos. Outrora amarelos, mas ainda da Carris. Há pobres e ricos, há pretos e brancos, há louros e morenos, há mães e putas, há viúvas e órfãos. Há pedintes, nacionais e estrangeiros, anunciando o advento da multiculturalidade também nesta “triste forma de vida” e arrumadores, andrajosos e miseráveis, quase todos, convictos no desempenho da sua função e sempre sequiosos da recompensa, obtida mais por receio do que merecimento.
Há um pouco de tudo, por aqui, por ali, por além. Mas ninguém liga a ninguém, exactamente porque ninguém odeia ninguém e talvez seja esse o encanto do povo da minha cidade. Ocorrem-me, em sussurro, as palavras sábias de José Cardoso Pires “É um povo de cais e fado a cavalo dum diabo complacente, a gente que aqui se faz. Por isso, o à-vontade com que junta na mesma cama o pecado com a virtude e o engenho com que sabe pôr uma vírgula burlesca numa estória de má sina.”
A vida flui calma no stress mediterrânico de quem tem muito que fazer, embora os horários mais não sejam do que ténues pontos de referência para quem quer ver as notícias das oito ou das dez ou as incontáveis telenovelas de gosto duvidoso, cujo efeito terapêutico provoca uma catarse, colectiva e individual, em domésticas e executivas, ecoando no ar como um sonoro orgasmo simultâneo.
Assim é a minha cidade. Magnífica, como só ela sabe ser, e todos os dias ela cresce, a cidade, e se deixa descobrir, brindando-nos com as inúmeras vistas e as perspectivas sempre renovadas, ângulos novos reveladores da beleza da urbe. Eternamente, o Miradouro de Santa Luzia e aquele acordar único, irrepetível, porque nesse dia acordei ainda mais mulher que todos os que o precederam, com a cidade a nossos pés, com a luz de Lisboa a beijar-nos, igualmente única. Sempre Alfama, sempre o Castelo e a Sé, mas também as zonas ribeirinhas onde paira amiúde a maresia, a maresia do rio. Cheira-me repentinamente a sardinha assada, como alucinação sinestésica, e a manjerico de Santo António de Lisboa, e a cidade torna-se ainda mais colorida, mais feérica, e ouço, em fundo, entre o rumor do rio e o trânsito ensurdecedor: Lisboa, menina e moça, menina, da luz que meus olhos vêem tão pura...
Agrada-me a Lisboa dos roteiros turísticos, a Lisboa brejeira e varina, de braço dado com a sofisticada e elegante, e esqueço os subúrbios quase imorais de tanta fealdade e, agora que se me foi o cheiro da sardinha, regressa o “fumo semi-opaco das castanhas assadas” e sim, agora sim, agora ecoam os versos de Cesário Verde que, também ele, cantou Lisboa, o Tejo e a maresia, e vejo o bulício espesso de que falava “Nas nossas ruas, ao anoitecer...”
Imagino Pessoa, no Martinho, e ocorre-me o auto-de-fé descrito por Saramago, no Rossio. E isso também é a cidade, apenas um pouco mais remota. E mais uma vez Cardoso Pires “Logo a abrir, apareces-me pousada sobre o Tejo como cidade de navegar.” E a todos os que, cantaram Lisboa retiro o meu chapéu em veneração que para se cantar em verso uma cidade, é preciso ser-se parte dela, respirar-se-lhe e ser-se ela.
A cidade, a mãe, a matriz. Lado a lado lá íamos nós, as duas, as duas admirando a cidade, as duas sentindo a cidade onde me puseste no mundo, acredito que não por acaso, e aguardaste ansiosamente que os mínimos olhos de recém-nascida se abrissem, para o mundo, para ti, minha mãe, para a cidade também, na esperança que fossem ínfimas esmeraldas ou pequenitos cristais, cor de mar caribenho, ou talvez duas gotículas do Tejo, indefinidas entre o azul e o verde, como o mar, como o Tejo. Mas não, minha mãe, eram negros os olhos, como duas azeitonas, contas tu, com um brilhozinho nos teus olhos cor de avelã e então sorrimos enternecidas e por dentro exulto em sentimento benfazejo e aí somos verdadeiramente mãe e filha, não duas mulheres ou amigas apenas.
Há muita plenitude em ser mãe, muita grandiosidade também, dizem, que de ser mãe nada entendo... mas ser filha pode ser pleno e grandioso também. Quando almoças comigo na cidade, quebrando a solidão de horas a fio que mais parecem ser dias, dias cinzentos e opacos, dias sem sol, nem azul, ou quando esperas pacientemente que, empolgada, passe revista a todas as camisas, camisolas, tops e t-shirts, existentes nas lojas de roupa e me fazes notar, como só as mães sabem, que aquela blusa branca, aquela que me parece tão gira e diferente, é exactamente igual a todas as outras que tenho, também isso é belo e igualmente pleno.
E quando me ouviste chorar, porque um amor nos tinha deixado, houve plenitude, minha mãe, porque comigo choraste, comigo sofreste, por amor também, que o amor surge de várias formas e cores como a cidade de Lisboa e nossa dor era una, como um fado triste nas vielas ao anoitecer. Mas este dia, em que ambas comungávamos a urbe encantada sob o brilho dourado do sol do meio-dia, não era dia triste, era grande e perfeito, como o sol de Lisboa, e quando te mostrei o sítio mais in da cidade e me questionaste algo incrédula a sua graça Lux? Lux como o sabonete? nunca foi tão inebriante nem tão belo o cheiro a sabonete.
foto: Maio, 2005
Lux? perguntaste tu. Lux, como o sabonete? Era dia de semana, azul e luminoso, e passeávamos pela cidade de meu coração, a cidade que amo acima de todas, porque lá fala-se a minha língua e a minha língua é a minha Pátria, como Pessoa, Pessoa de quem tanto gosto, afirmou. O caos é ele próprio uma forma de vida e cidade alguma consegue mimar-nos como Lisboa, com a luz de Lisboa. A primeira luz que vi, a primeira cor do mundo foi a cor de Lisboa e a última cor que verei, será a de Lisboa também?
Cidade branca, cidade cinzenta, cidade azul, pintada de cores e humores, caprichosa e voluntariosa, paciente e terna. Como línguas, as ruas alongam-se até ao rio. Há carros, sempre carros e camionetas e comboios e eléctricos. Outrora amarelos, mas ainda da Carris. Há pobres e ricos, há pretos e brancos, há louros e morenos, há mães e putas, há viúvas e órfãos. Há pedintes, nacionais e estrangeiros, anunciando o advento da multiculturalidade também nesta “triste forma de vida” e arrumadores, andrajosos e miseráveis, quase todos, convictos no desempenho da sua função e sempre sequiosos da recompensa, obtida mais por receio do que merecimento.
Há um pouco de tudo, por aqui, por ali, por além. Mas ninguém liga a ninguém, exactamente porque ninguém odeia ninguém e talvez seja esse o encanto do povo da minha cidade. Ocorrem-me, em sussurro, as palavras sábias de José Cardoso Pires “É um povo de cais e fado a cavalo dum diabo complacente, a gente que aqui se faz. Por isso, o à-vontade com que junta na mesma cama o pecado com a virtude e o engenho com que sabe pôr uma vírgula burlesca numa estória de má sina.”
A vida flui calma no stress mediterrânico de quem tem muito que fazer, embora os horários mais não sejam do que ténues pontos de referência para quem quer ver as notícias das oito ou das dez ou as incontáveis telenovelas de gosto duvidoso, cujo efeito terapêutico provoca uma catarse, colectiva e individual, em domésticas e executivas, ecoando no ar como um sonoro orgasmo simultâneo.
Assim é a minha cidade. Magnífica, como só ela sabe ser, e todos os dias ela cresce, a cidade, e se deixa descobrir, brindando-nos com as inúmeras vistas e as perspectivas sempre renovadas, ângulos novos reveladores da beleza da urbe. Eternamente, o Miradouro de Santa Luzia e aquele acordar único, irrepetível, porque nesse dia acordei ainda mais mulher que todos os que o precederam, com a cidade a nossos pés, com a luz de Lisboa a beijar-nos, igualmente única. Sempre Alfama, sempre o Castelo e a Sé, mas também as zonas ribeirinhas onde paira amiúde a maresia, a maresia do rio. Cheira-me repentinamente a sardinha assada, como alucinação sinestésica, e a manjerico de Santo António de Lisboa, e a cidade torna-se ainda mais colorida, mais feérica, e ouço, em fundo, entre o rumor do rio e o trânsito ensurdecedor: Lisboa, menina e moça, menina, da luz que meus olhos vêem tão pura...
Agrada-me a Lisboa dos roteiros turísticos, a Lisboa brejeira e varina, de braço dado com a sofisticada e elegante, e esqueço os subúrbios quase imorais de tanta fealdade e, agora que se me foi o cheiro da sardinha, regressa o “fumo semi-opaco das castanhas assadas” e sim, agora sim, agora ecoam os versos de Cesário Verde que, também ele, cantou Lisboa, o Tejo e a maresia, e vejo o bulício espesso de que falava “Nas nossas ruas, ao anoitecer...”
Imagino Pessoa, no Martinho, e ocorre-me o auto-de-fé descrito por Saramago, no Rossio. E isso também é a cidade, apenas um pouco mais remota. E mais uma vez Cardoso Pires “Logo a abrir, apareces-me pousada sobre o Tejo como cidade de navegar.” E a todos os que, cantaram Lisboa retiro o meu chapéu em veneração que para se cantar em verso uma cidade, é preciso ser-se parte dela, respirar-se-lhe e ser-se ela.
A cidade, a mãe, a matriz. Lado a lado lá íamos nós, as duas, as duas admirando a cidade, as duas sentindo a cidade onde me puseste no mundo, acredito que não por acaso, e aguardaste ansiosamente que os mínimos olhos de recém-nascida se abrissem, para o mundo, para ti, minha mãe, para a cidade também, na esperança que fossem ínfimas esmeraldas ou pequenitos cristais, cor de mar caribenho, ou talvez duas gotículas do Tejo, indefinidas entre o azul e o verde, como o mar, como o Tejo. Mas não, minha mãe, eram negros os olhos, como duas azeitonas, contas tu, com um brilhozinho nos teus olhos cor de avelã e então sorrimos enternecidas e por dentro exulto em sentimento benfazejo e aí somos verdadeiramente mãe e filha, não duas mulheres ou amigas apenas.
Há muita plenitude em ser mãe, muita grandiosidade também, dizem, que de ser mãe nada entendo... mas ser filha pode ser pleno e grandioso também. Quando almoças comigo na cidade, quebrando a solidão de horas a fio que mais parecem ser dias, dias cinzentos e opacos, dias sem sol, nem azul, ou quando esperas pacientemente que, empolgada, passe revista a todas as camisas, camisolas, tops e t-shirts, existentes nas lojas de roupa e me fazes notar, como só as mães sabem, que aquela blusa branca, aquela que me parece tão gira e diferente, é exactamente igual a todas as outras que tenho, também isso é belo e igualmente pleno.
E quando me ouviste chorar, porque um amor nos tinha deixado, houve plenitude, minha mãe, porque comigo choraste, comigo sofreste, por amor também, que o amor surge de várias formas e cores como a cidade de Lisboa e nossa dor era una, como um fado triste nas vielas ao anoitecer. Mas este dia, em que ambas comungávamos a urbe encantada sob o brilho dourado do sol do meio-dia, não era dia triste, era grande e perfeito, como o sol de Lisboa, e quando te mostrei o sítio mais in da cidade e me questionaste algo incrédula a sua graça Lux? Lux como o sabonete? nunca foi tão inebriante nem tão belo o cheiro a sabonete.
foto: Maio, 2005
Concordo contigo e aqui tens outro "mouro" que se rendeu à cidade. E passei por Santa Apolônia e não notei o Lux!
ResponderEliminarO lux é muito discreto... e nada bonito. E ainda bem que ficou mouro, Avenalve :))
ResponderEliminarComo foi bom ler aqui a minha, a nossa, Lisboa! E a ternura por essa Mãe q a merece!
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