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quarta-feira, 14 de junho de 2006

Dos gardenias

Não mais esquecerei aqueles olhos que me cantaram.
Havana é um sítio mágico com um encanto único. Será a miscigenação das gentes? Serão os sorrisos incomparáveis que nos deixam na alma a fugaz sensação de sermos amados? Será a junção da decadência com a nostalgia de tempos de outrora? O que é não sei... Sei que lá me sinto em casa. “Podíamos cá ficar” disseste, e concordei “Sim, era capaz de cá ficar”. Talvez aquele calor. Talvez a vendedora do colar de semillas rubras que, ao segundo dia, me chamou, como poucos me chamam, “Hola, amiga!!!” Talvez o empregado do hotel com sorriso aberto e pele de chocolate de leite “Una piñita?” Talvez a displicência das mulheres carnudas, ao exibirem os corpos de volúpia. Talvez o son. Talvez.
E continuámos sonhando “Abríamos cá um paladar, tu cozinhavas e eu servia à mesa. Olha que rendia...” Imaginava-me por detrás dos tachos e panelas, mesclando sabores lusos com leve travo cubano e não desgostava do sonho, exactamente porque era um sonho, e o que me agradava no sonho, muito menos ambicioso do que outros que tive, era precisamente essa ausência de ostentação, esse aparente despojamento, essa humildade no querer para quem muito tinha lido, em livros vários de gentes várias e até disso tinha extraído dois canudos guarnecidos com selo de lata e fitas azuis, redigidos num linguajar incompreensível à excepção do nome da possuidora dos ditos e guardados, também eles, em canudos de lata reluzente. E depois, seguiu-se ainda um outro papel, mais singelo no apresentar, mas similarmente trabalhoso.
“Vínhamos para cá” continuávamos “Já viste este calor? E as pessoas são tão simpáticas...” pois era “e depois com o paladar... Mas tem que ser uma empresa familiar. Não pode haver empregados e também só se podem sentar doze pessoas.” E o sonho continuava “A ideia agrada-me” E como me poderia agradar essa ideia é mistério, ou talvez não. O apelo da aventura era forte. A rejeição de estatuto, a ausência de pergaminhos luso-europeus surgiu-me como uma ideia excelente. Sem títulos. Apenas um letreirito, sem glamour nem minimalismos impostores, apenas um letreirito na porta anunciando PALADAR, acrescido de um outro nome mais sugestivo, por exemplo, DOS GARDENIAS, em homenagem aos olhos que me cantaram essa mesma canção na Plaza de Armas, um dia após o meu aniversário, num glorioso e tórrido dia de sol habanero, e que recebi na alma como um presente para a efeméride, o mais original dos presentes e dos mais sentidos da minha vida.
E os soneros acompanharam-me pela praça e leram-me o espírito e o sentir ao entoarem “Dos gardenias para tí... Con ellas quiero decir: te quiero, te adoro, mi vida...” Desfalecia discretamente de emoção, as pernas tremendo, os olhos a humedecerem-se, teimosos, ao ouvir a melodia que outrora num filme, também belo esse filme, me proporcionou um momento sem igual e, ao encontrar-me então sozinha e solitária na sala de cinema, assaltou-me uma vontade compulsiva de tocar com o indicador no ombro do espectador do lado, abeirar-me dele e partilhar esfuziante “O senhor deixe-me contar-lhe isto: é que eu vi esta mulher em Havana, ao vivo, no Tropicana... esta mesmo, esta que eles diziam que era a Amália Rodrigues lá do sítio”. Pode ser triste a solidão que nos impele a partilhar com estranhos momentos belos da nossa história ou pode ser bela, também, apenas a necessidade de partilhar plenitudes.
E a música continuava, melhor do que qualquer disco, mais sentida que qualquer fado, mais romântica que qualquer jantar à luz de velas no paraíso maldivo. Não se lhes ouvia a voz, ouvia-se-lhes a alma. A praça encheu-se ainda mais de mais luz, ainda mais intensa e verdejante, a ceiba e o Templete e mais cor, talvez da guayabera turquesa que um dos cantantes envergava, e transbordei de sentir num daqueles momentos sem explicação e que nos faz pensar que valeu a pena ter vivido. Sim, assim vale a pena e assim valeu a pena.
E ele tirou o chapéu e recolheu-o junto ao peito entoando sempre “Dos gardenias para tí...” e também eu lhe tirei, metaforicamente, o meu chapéu. Eram para mim, as gardénias. Os olhos cantavam, os olhos cristalinos com expressão, com sentir benfazejo. Jamais os esquecerei, os olhos, os olhos que me cantaram.
“Vínhamos para cá... e depois com o paladar” e rematávamos “Já viste que calor este, que noite esta... Magnífico, não é?” E era mesmo. “Nem sofrem de depressões, nem de stress...” recomeçávamos a conversa após breves intervalos de silêncios cúmplices “Imagina só PALADAR »DOS GARDENIAS«, e eu imaginava. Eu na cozinha a cheirar a hierbabuena e tu, nas mesas, delicado entre mojitos e tostones e os olhos a cantarem-me “Dos gardenias para tí...”
in Histórias com Mundo Dentro
texto protegido por copyright
em memória de aniversários passados

9 comentários:

  1. PARABÉNS!!!!! beijos da família teresita, faia e tito ;)

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  2. Obrigada Fafaia. Beijinhos grandes para os três :)

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  3. as gardenias eram so para a menina dos anos, para mais ninguem
    ;-)

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  4. ah... mais uma vez muito obrigada :)

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  5. Parabéns! Lindo texto a assinalar! Parabéns extensivos à sua Mãe.Desculpe o atraso. Nem sempre navego a horas :)
    Bjo

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  6. Bem-vinda, tb! Este texto foi escrito há quantro anos, quando passei o meu aniversário em Cuba. Ainda bem que gosta/gostas ;-) Será TB quem eu estou a pensar?

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