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terça-feira, 13 de junho de 2006

Santo António

A minha mãe é devota do Santo António. Acredito, por isso também, que o mês de Junho é para mim mês de Lisboa. Nasci em Lisboa, nasci em Junho, sou uma amante confessa da poesia de Fernando Pessoa, também nascido em Lisboa, também nascido em Junho e Santo António é para mim de Lisboa e de Junho.
Uma ocasião, estando eu e a minha mãe em Itália e havendo apenas uma tarde disponível, oscilámos perante duas visitas distintas, uma de carácter mais literário: Verona, para ver a célebre varanda de Julieta e recordar o amor maior e trágico cantado pelo poeta maior, a outra de carácter religioso; Pádua, para peregrinar e homenagear Santo António de Lisboa, sepultado em Pádua. É sabido que não se dá por provado ser aquela a varanda de Julieta Capuleto e mais sabido ainda que a fé é por vezes maior do que a literatura, portanto, depois de amplamente discutido e negociado, decidimos visitar Pádua. Em verdade se diga que a insistência ocorreu mais por minha parte e que ainda hoje a minha mãe diz que me ficou a dever a varanda da Julieta. Sinto-me feliz por lhe ter proporcionado esse gosto. No amor não há deve e haver.
Na verdade, não faço questão de visitar altares do mundo. Lourdes não me diz nada, rigorosamente nada. Fátima idem. Roma é absolutamente sumptuoso, mas em rigor confesso que em nada tocou a minha já parca devoção religiosa. Pelo contrário. Enquanto a minha mãe e o H. se detinham nas explicações da guia sobre a capela Sistina, eu fui espairecer pelo Pátio da Pinha, no Vaticano. O meu humor matinal é canino, nem sei mesmo se não estarei a ofender os nossos fiéis amigos, e portanto, todo aquele fausto logo pela manhã, causou-me uma irritação inominável. Passeei, pois, na esperança que dissipasse e pensava com os meus botões, um apenas, era quanto tinha, se eles não teriam, por acaso, vergonha de tanta ostentação. Como diria o meu pai Vamos lá ser razoáveis, caramba! Cheguei à conclusão que não, vergonha não mora ali, até porque o mais recente titular da cadeira de Pedro destaca-se pelos sapatos Geox, óculos Rayban e farpelas de renome. Ainda hesitei em pedir ao guarda o livro de reclamações. Entrei e saí das lojas de lembranças e fui tirando chapa aqui, chapa ali, com os sentimentos em ebulição, observando as pessoas e o movimento para afastar ressentimentos. Quer tudo isto dizer que não sou, pois, a mais fervorosa das criaturas e que por mais que procure a minha vocação religiosa, a minha fé, não consigo senti-la, encontrá-la, muito menos nestes locais. Quando ela não mora em nós, não morará em lugar algum.
Esta visita a Pádua teve como objectivo único acompanhar a minha querida mãe na sua devoção pelo Santo de Lisboa. Mesmo antes da entrada na Basílica e em frente da mesma os postais contrariavam a condição benta do local. Rabos, maminhas e piadas jocosas escarrapachadas em postais confrontavam a entrada para o santo templo. Estranhei. Depois entrámos e depois verifiquei que também lá dentro muito se vendia, se trocava por dinheiro, por dinheiros, e aviso desde já que esta mistura entre o vil metal e as artes eclesiásticas me provoca uma repulsa visceral. Nesse dia de Fevereiro em Pádua, verifiquei que para ver as relíquias do santo tinha de se pagar um extra, assim fizemos, já que lá estávamos, embora a náusea pelas ditas continue a persistir sempre que o episódio me vem à memória. Bocados de língua? Blergh. Saímos da área das relíquias e numa das capelas laterais estava um frade. Perguntou-nos, enquanto admirávamos a abóbada e a nave Che cosa volete? Volete una benedictione? Entreolhámo-nos e teremos, terei pensado bem, isto mal não deve fazer... Venha ela, portanto. E ela veio, palavra cá, palavra lá, água benta aqui e acolá e logo após a mão estendida, não-sei-quantas mille lire faz favor. Como não aceitava devolução, outro remédio não tivemos senão, mesmo ali, junto ao altar-mor, às relíquias de Santo António e na casa do Senhor, restolhar nos porta-moedas, contar as mille lire e, sem mais, pagar a bênção, o que me caiu muito mas muito mal. Alguém lhe tinha pedido alguma coisa por acaso?
Acredito que na vida pouco mais existe além dos afectos. São eles que me movem, que me fazem levantar todos os dias, sorrir e chorar, que me ergueram dos confins, que me ajudaram a equilibrar a vida e a morte e são eles que hoje me fazem recordar este episódio. Só me resta agradecer ao Santo António, portanto.

2 comentários:

  1. Compreendo o teu sentimento. Também me repugna tanta ostentação.

    Mas a curiosidade que encontrei em Pádua, foi o facto de existir um e-mail do Santo António!!!!

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  2. E-mail do Sto. António??? Que Santo tão à frente ;-)

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