A mercearia da aldeia é um mundo. Gerida apenas por mulheres de gerações diferentes, todas elas, da mais velha à mais nova, com o mesmo despacho, desenrasque, diligência e respeito pelo consumidor, a mercearia constitui um lugar sui generis, palco de aprendizagens diversas e enriquecedoras. Tudo pode ser vendido à confiança, pode lebar à confiança e reclamado caso a qualidade não satisfaça os clientes ó coração, se não for bom, benha cá trocar. O cliente é rei. Eh, pá, não há nada pior pra mim, qué dizer a um cliente que na tenho! confessa a proprietária, embora o desabafo seja raro, uma vez que quase tudo se encontra à venda e, se tal não for o caso, no dia seguinte já o desejo do cliente foi satisfeito. Uma ocasião, procurava pimenta em grão. A rapariga, a filha, ficou aflita, nunca enrrascada, porém. Não havia. No dia imediatamente a seguir e, assim que lá entrei, a rapariga chamou Dona! e sem mais palavras exibiu ufana uma pacotinho de três pimentas em grão. Não resisti perante a consideração do gesto e, mesmo que a pimenta não fosse mais necessária, acabei por sair da loja com ela.
Nas horas de ponta, regra geral entre as onze e as treze aos fins-de-semana, o caos instala-se. Cada um tenta chegar aos pêssegos, alcançar o pão da avó, carinhosamente epítetado pelas filhas, e enquanto isso, entre hortaliças e beringelas, figos e cogumelos, detergentes e farinhas, a conversa corre, salta, flui, voa ao sabor das palavras eufemisticamente despojadas e dos humores muitas vezes femininos e brejeiros, servindo amiúde como remate de acontecimentos recentes ou conclusão dos dias anteriores. Certo dia, numa dessas horas de aperto, o H. encostou-se a uma prateleira para dar passagem à dona, exíguo que se apresentava o espaço disponível. A mulher arremessou-lhe Nã te enerbes, na te enerbes que na te apalpo. Mai nada!
Ontem a conversa rondava em torno da vitória de Portugal sobre a Inglaterra. atão, tás melhor hoje? perguntou uma mulher à feliz proprietária do estabelecimento Eh pá, bocê, nem me diga nada… respondeu a dita. A outra mulher continuou Eu nem podia ber o jogo, eh pá, ca nerbos… Nestes momentos a conversa é alargada aos restantes frequentadores do estabelecimento, caso se mostrem cooperantes e interessados. A mulher olhou para mim à espera de uma qualquer palavra. Sorri e balbuciei algo em concordância. A mulher continuou eu nem bi… a dona prosseguiu Beio cá uma senhora, uma que mora aqui, e fomos comer caracóis e beber imperiais. A outra inquiriu Atão e fechaste a loja? Não, respondeu, deixei cá a nha mãe. E de repente, a conversa virou para o Ricardo, o herói do momento. Terei dito que o Ricardo foi uma peça imprescindível na obtenção desta vitória. A mulher concordou e disse E deram na tebisão, lá da terra dele. Ai, como é que é? Adonde é que ele é? Acrescentei acho que ele é do Montijo. A mulher concordou Ai, é isso, é. E deu aquela gente toda… Agora quando ele boltar é que bai ser... Concordei e, vindo como do nada, a mulher pergunta-me Atão e a mulher dele? Não sei, disse. É que ontem eles falaram da mulher e do filho mas eu na a bi lá… Engendrei uma resposta em auxílio da reputação da mulher de Ricardo. Onde estaria, sim, onde andaria a mulher dele naquela altura? Acrescentei Se calhar, está na Alemanha. Houve muitas mulheres de jogadores que foram para lá. A mulher sossegou Ah, natralmente é isso, natralmente tá lá com ele. Natralmente tá, pensei.
Nas horas de ponta, regra geral entre as onze e as treze aos fins-de-semana, o caos instala-se. Cada um tenta chegar aos pêssegos, alcançar o pão da avó, carinhosamente epítetado pelas filhas, e enquanto isso, entre hortaliças e beringelas, figos e cogumelos, detergentes e farinhas, a conversa corre, salta, flui, voa ao sabor das palavras eufemisticamente despojadas e dos humores muitas vezes femininos e brejeiros, servindo amiúde como remate de acontecimentos recentes ou conclusão dos dias anteriores. Certo dia, numa dessas horas de aperto, o H. encostou-se a uma prateleira para dar passagem à dona, exíguo que se apresentava o espaço disponível. A mulher arremessou-lhe Nã te enerbes, na te enerbes que na te apalpo. Mai nada!
Ontem a conversa rondava em torno da vitória de Portugal sobre a Inglaterra. atão, tás melhor hoje? perguntou uma mulher à feliz proprietária do estabelecimento Eh pá, bocê, nem me diga nada… respondeu a dita. A outra mulher continuou Eu nem podia ber o jogo, eh pá, ca nerbos… Nestes momentos a conversa é alargada aos restantes frequentadores do estabelecimento, caso se mostrem cooperantes e interessados. A mulher olhou para mim à espera de uma qualquer palavra. Sorri e balbuciei algo em concordância. A mulher continuou eu nem bi… a dona prosseguiu Beio cá uma senhora, uma que mora aqui, e fomos comer caracóis e beber imperiais. A outra inquiriu Atão e fechaste a loja? Não, respondeu, deixei cá a nha mãe. E de repente, a conversa virou para o Ricardo, o herói do momento. Terei dito que o Ricardo foi uma peça imprescindível na obtenção desta vitória. A mulher concordou e disse E deram na tebisão, lá da terra dele. Ai, como é que é? Adonde é que ele é? Acrescentei acho que ele é do Montijo. A mulher concordou Ai, é isso, é. E deu aquela gente toda… Agora quando ele boltar é que bai ser... Concordei e, vindo como do nada, a mulher pergunta-me Atão e a mulher dele? Não sei, disse. É que ontem eles falaram da mulher e do filho mas eu na a bi lá… Engendrei uma resposta em auxílio da reputação da mulher de Ricardo. Onde estaria, sim, onde andaria a mulher dele naquela altura? Acrescentei Se calhar, está na Alemanha. Houve muitas mulheres de jogadores que foram para lá. A mulher sossegou Ah, natralmente é isso, natralmente tá lá com ele. Natralmente tá, pensei.
Natralmente, o que anda por aí pelas revistas é que o menino Ricardo não anda a dar-se muito bem com a mulher, e porque a senhora engordou um bocadinho nos últimos anos....
ResponderEliminarMas eu cá não sou de boatos ;op
Que boa cronista estás te revelando! Que bom saber que ainda é possível encontrar lugares que fogem da impessoalidade dos supermercados e onde se pode escutar diálogos como esses. Por aqui, nas feiras livres é possível perambular pelas barracas, experimentar a fruta que o vendedor te oferece, provar um queijo, comentar com os feirantes os acontecimentos recentes, aceitar as suas recomendações sobre a qualidade de um determinado produto e por aí.
ResponderEliminarE, após a queda da nossa seleção, avante Portugal!
LOL!
ResponderEliminarNatralmente é sempre bom ir à mercearia fazer as compras! Pelo menos ficamos a par das nobidades!
E eu que não sou de intrigas volto para dizer que afinal, noutra capa de revista vinha que o Ricardo dedicava o jogo à mulher e ao filho.... Já num precebo nada....
ResponderEliminar;op
Olá a tod@s!
ResponderEliminarFantasminha, não fazia a menor ideia do que passa com a família do Ricardo e achei que a pergunta se devia à cusquice natural ;-)
Avenalve,
Muito obrigada pelo elogio. Aqui a aldeia é uma óptima inspiração para estas histórias. Tenciono continuar a contar estas aventuras, já tenho algumas, mas estava à espera de o texto se estruturar na minha cabeça. Foi hoje.
Preferia que Portugal fosse jogar com o Brasil :)
Patrícia,
A mercearia é um poço de informação e divertimento. Natralmente :)
Sofia,
Compreendo bem essa opção ou falta dela. Aqui também acontece isso, mas também tem o efeito inverso. Como os pais vivem relativamente bem, os alunos acabam por achar que não vale a pena estudar, se têm o negócio do pai. Estas histórias são bem engraçadas e admiro muito a sabedoria popular.
Bjs e obrigada pelas palavras e incentivo à escrita :)
Foi uma crónica mesmo encantadora, lindíssima, cheia de micro-observações da vida cotidiana que agradaram-me ler, todas embrulhadas numa narrativa que corre como um rio quieto. Escreves tão bem, parabens e thank you again!
ResponderEliminarObrigada, swiss tony :)
ResponderEliminarBelo, belíssimo texto, papalagui! Sou filha e neta de lojistas, dos 2 lados da família. Digo lojistas porque nas lojas da minha família, no Alentejo, vendia-se mesmo tudo, de 'pitrol' a milho, de bolacha avulsa a tecidos, de sabão-macaco a enchidos e carne (fabrico da casa, desde o nascimento do porco à sua transformação). Como o Manelinho da Mafalda, também eu me empoleirava ao balcão a atender fregueses, muito séria, a fingir fazer contas em papel de embrulho. Ao ler o teu texto e ao escrever isto sinto ainda o cheiro da loja, e também o cheiro da 'venda' do meu avô materno, aquela estranha mistura de farelos, vinho tinto e tabuleiros de marmelada. Obrigada por esta viagem. Um dia havemos de ler estes textos com lombada e badanas.
ResponderEliminarNão preciso das babdanas e lombada, se os meu textos te fazem feliz. Fico comovida. Um beijo
ResponderEliminarbadanas, claro. Inté fiquei disléxica derivado dos elogios ;-)
ResponderEliminarAh, mas eu cá também voto nas badanas e nas lombadas, ah pois é!!!
ResponderEliminar:)
Sois umas tolitas por acreditar tanto em mim. Se esse dia chegar quero-vos comigo :)
ResponderEliminarA minha bisavó falava assim. Tal e qual. Que saudades.
ResponderEliminarGosto tanto de te ler, papalagui!!!