É curiosa a imagem que os alunos vão colhendo dos professores. Na verdade, assusta-me um pouco esta ideia de que o professor apenas sabe ou conhece os conteúdos que lecciona e só domina a área de saberes que estudou. Tudo o resto é um mundo ilustremente desconhecido no universo do professor. Como seria redutora a vida de todos nós se apenas soubéssemos o que estudámos. É muito divertido, portanto, constatar os olhares de surpresa e admiração, quando se aborda um outro assunto da disciplina vizinha. Apenas um comentário ou uma sugestão sobre uma temática da actualidade, um livro ou um poema, um escritor ou um filósofo, podem surtir um efeito surpreendente e transformar um professor num mestre sublime do conhecimento.
Assim foi há uma década mal medida. Nesse ano, imediatamente antes da minha aula, tinham Português. Li o sumário da disciplina bem à minha frente no livro de ponto e, ouvindo-os comentar sobre o assunto versado na aula em questão, terei retoricamente perguntado se tinham dado “Os Cinco Sentidos” de Almeida Garrett. Perguntas destas detêm muito pouco da sua função de questionar e indagar, perguntar, em suma. Cumprem antes o propósito de quebrar o gelo, fazê-los descontrair ou apenas conversar enquanto se resolvem as questões mais práticas: número da lição, sumário e/ou outras mais. Diga-se em abono da verdade, porém, que nem todas as turmas e nem todos os alunos se prestam a este tipo de conversas.
A pergunta regressou como um boomerang A Setora conhece “Os Cinco Sentidos?!” com um misto de estupefacção e desconfiança. Conheço respondi. Os alunos não se ficaram por ali, particularmente um que se sentava na carteira da frente. Era baixo, tinha o caderno repleto de corações com o nome da namorada e transbordava de romantismo e delicadeza, arrebatado pela química que o unia à amada. Via-os com frequência nos braços um do outro, enquanto me deslocava de umas salas para as outras, sempre convictos e enleados, cuidando do seu amor jovem oscilante entre o quase êxtase do desejo e a timidez dos lugares públicos. O questionário continuou E a Setora sabe o que é a "relva"? referindo-se à carga simbólica e erótica do poema. Sim, sei respondi de novo. Ele começou a rir-se baixinho com o colega do lado perante a descoberta de que eu afinal sabia mais do que aparentava, algo proibido e interdito e que sim, que o erotismo não me era de todo desconhecido. Continuou E os pomos? A Setora sabe o que são os "pomos"? Terei rematado algo sobre o erotismo das palavras de Garrett e ele intensificou o sorriso malandro Eh, a Setora sabe o que são os pomos… e continuou rindo baixinho , transparecendo que, afinal, também eu era uma malandrona, conhecedora que me apresentava do simbolismo carnal da poesia de Garrett. A aula prosseguiu sem nada de novo. Numa outra aula, talvez imediatamente a seguir, Almeida Garrett veio de novo à conversa. Desta vez não houve simbolismos nem meios simbolismos, nada de palavras que queriam dizer mais do que alardeavam significar. Dessa vez, o E. estava indignado. Indignado contra o Garrett. Disse-me apenas Ele é um bruto! ao que questionei porquê. Continuou no mesmo tom. Então, setora, acha bem ele dizer uma coisa daquelas à rapariga? Dizer-lhe que não a ama? A manifestação intempestiva do desejo sem um sentimento menos corpóreo para o consubstanciar não era característica que se adequasse ao E. mas vindo desse bruto do Garrett outra coisa não seria de esperar.
Assim foi há uma década mal medida. Nesse ano, imediatamente antes da minha aula, tinham Português. Li o sumário da disciplina bem à minha frente no livro de ponto e, ouvindo-os comentar sobre o assunto versado na aula em questão, terei retoricamente perguntado se tinham dado “Os Cinco Sentidos” de Almeida Garrett. Perguntas destas detêm muito pouco da sua função de questionar e indagar, perguntar, em suma. Cumprem antes o propósito de quebrar o gelo, fazê-los descontrair ou apenas conversar enquanto se resolvem as questões mais práticas: número da lição, sumário e/ou outras mais. Diga-se em abono da verdade, porém, que nem todas as turmas e nem todos os alunos se prestam a este tipo de conversas.
A pergunta regressou como um boomerang A Setora conhece “Os Cinco Sentidos?!” com um misto de estupefacção e desconfiança. Conheço respondi. Os alunos não se ficaram por ali, particularmente um que se sentava na carteira da frente. Era baixo, tinha o caderno repleto de corações com o nome da namorada e transbordava de romantismo e delicadeza, arrebatado pela química que o unia à amada. Via-os com frequência nos braços um do outro, enquanto me deslocava de umas salas para as outras, sempre convictos e enleados, cuidando do seu amor jovem oscilante entre o quase êxtase do desejo e a timidez dos lugares públicos. O questionário continuou E a Setora sabe o que é a "relva"? referindo-se à carga simbólica e erótica do poema. Sim, sei respondi de novo. Ele começou a rir-se baixinho com o colega do lado perante a descoberta de que eu afinal sabia mais do que aparentava, algo proibido e interdito e que sim, que o erotismo não me era de todo desconhecido. Continuou E os pomos? A Setora sabe o que são os "pomos"? Terei rematado algo sobre o erotismo das palavras de Garrett e ele intensificou o sorriso malandro Eh, a Setora sabe o que são os pomos… e continuou rindo baixinho , transparecendo que, afinal, também eu era uma malandrona, conhecedora que me apresentava do simbolismo carnal da poesia de Garrett. A aula prosseguiu sem nada de novo. Numa outra aula, talvez imediatamente a seguir, Almeida Garrett veio de novo à conversa. Desta vez não houve simbolismos nem meios simbolismos, nada de palavras que queriam dizer mais do que alardeavam significar. Dessa vez, o E. estava indignado. Indignado contra o Garrett. Disse-me apenas Ele é um bruto! ao que questionei porquê. Continuou no mesmo tom. Então, setora, acha bem ele dizer uma coisa daquelas à rapariga? Dizer-lhe que não a ama? A manifestação intempestiva do desejo sem um sentimento menos corpóreo para o consubstanciar não era característica que se adequasse ao E. mas vindo desse bruto do Garrett outra coisa não seria de esperar.
Sua malandrona! :o)
ResponderEliminarEste blog está sendo muito instrutivo para mim. Ontem Florbela Espanca, hoje Almeida Garrett. Para acompanhar os "posts" tenho que recorrer aos meus velhos e empoeirados compêndios de literatura. E ontem, ao ler os comentários sobre a sensibilidade masculina me deu vontade de responder às provocações com estas quadras:
ResponderEliminarAcreditar em mulheres
É coisa que ninguém faz;
Tudo quanto amor constrói
A inconstância desfaz.
Hoje amam, amanhã 'squecem,
Ora dores, ora alegrias;
E o seu eternamente
Dura sempre uns oito dias!...
(Verdades Cruéis, de Florbela Espanca.)
E porque te chamam "setora"?
Aventino, ontem estava à espera que uma voz masculina se levantasse. O texto contém mesmo essa provocaçãozita, mas foi mais brincadeira mesmo. Homens e mulheres são/somos todos diferentes e todos iguais. O poema da Florbela Espanca está muito bem escolhido. :)
ResponderEliminarCá em Portugal há o hábito de tratar os professores por Sr. Dr., os alunos casaram as duas expressões e sai algo parecido com isso.
Giríssimo este teu post. E, de facto, é assim, ver stôres a falar de coisas que não são supostos saber também me soava a esquisito!
ResponderEliminar;-)
Beijos
Cada vez gosto mais de visitar este blog. Ainda bem que tropecei em ti algures pela blogosfera! :)
ResponderEliminarGostei imenso de ler este post. É DE-LI-CI-O-SO! Pela história vista por ti, pelas diferentes abordagens do assunto por parte dos dois alunos, pelas palavras que escolheste... enfim... cinco estrelas!
Beijola.
eu ODEIO o Garrett.
ResponderEliminarprimeiro nao gosto dos livros dele nem da figura
segundo, quando tive que ler as Viagens na Minha Terra no 10o ano havia um rapaz chamado Carlos que tinha uma paixoneta por mim. cada vez que a professora mandava alguem ler em voz alta aqueles dialogos Joaninha/Carlos era uma risota pegada e a professora achava que a culpa era minha e que estava a fazer macacadas...
Obrigada, Pitucha e Carlota!
ResponderEliminarAcho que o encanto da profissão tem a ver com estas peripécias e a capacidade que os alunos têm de nos surpreender.
Joana,
Eu nem me lembro de ter lido as Viagens na minha Terra mas gostei da Lírica e este episódio foi memorável.
Bjs a todas :)
Este post está lindo. Uma bela estória.
ResponderEliminarBjokas
Carlos - o que não tinha uma paixoneta pela Joana/Joaninha - Malmoro
Papalagui,
ResponderEliminarNa biblioteca da minha escola temos vindo a fazer, com sucesso, sessões de leitura de poemas nas quais está envolvida toda a comunidade educativa. E de repente é ver o prof. de Matemática a recitar Sophia, a prof. de Educação Física a ler Pessoa, a funcionária da reprografia a declamar Cesário e por aí.
Isto para dizer que gostei muito de ler este post.
Obrigada, Carlos e laerce.
ResponderEliminarSeria muito bom se em todas as escolas todos contribuíssemos com o que sabemos. Nós cá temos uma funcionária que faz poemas e no Dia da Mulher a Escola ofereceu um embrulhinho de bonbons com uma das quadras da senhor. Achei uma ideia óptima.