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quinta-feira, 21 de setembro de 2006

Uma palabra

O Nortês é um linguajar poderosíssimo impassível de se deixar reproduzir por transcrições fonéticas de pacotilha. Ele não são só os sons nasalados, os –ão onde deviam soar –on, os –on onde deviam surgir -ão, dezôito em vez de dezoito, Fraoncisco onde seria Francisco. O Saloiês deixa-se representar facilmente na escrita. Os ditongos achatados, um –i no fim de algumas palavras terminadas em –r, um derivado aqui outro acolá, um pertence ou na pertence quando algo não faz parte do convencionado para uma situação ou contexto, muitos você ou bocê à mistura e a coisa vai. Não o Nortês, porém. É toda uma panóplia de sons e expressões que se movem na nossa frente como corpos, animais indomáveis que vemos pavonear–se em frente dos nossos narizes. Sons que têm uma vida física intraduzível por palavras e descrições, porque são mais do que sons, são organismos vivos de vidas independentes, rebeldes e indomesticáveis.
O casal da Afurada era profícuo em verbalizações surpreendentes. O filho adolescente nunca foi chamado pelo nome. Era apenas o meneino, a cesariana que a Miss Afurada fez para trazer o meneino ao mundo uma saseriana e sempre que o AfuradaMan pedia café em terras de Vera Cruz perguntava triunfante ao empregado Tendes café? Ai tendes, tendes. Valiam-lhe os não-afuradenses, ou estaria ainda a perguntar Oube lá, anda cá! Tendes café? Se num tendes, bou-me imbora, fua**-se! Claro que o oube lá não faltava e o fua**-se muito menos. Suspeitamos até que teria aprendido um português telegráfico e substituído o comum stop por uma sonoro fua**-se. Caso enviasse um telegrama para o meneino, o texto seria entrecortado por uma série completa de fua**-se. Tamos a Gostar munto fua**-se Isto aqui é lindo fua**-se Adeus, meu meneino fua**-se. Os nomes próprios eram igualmente mudados arbitrariamente. Dalila para Lília, por exemplo, e certo dia em que fomos abordados por uma repentista que vendia a sua arte em literatura de cordel, o AfuradaMan não hesitou em chamar-lhe Alice. Ela não se chama Alice disse-lhe, já cansada, que criatividade linguística também satura. Num se chama Alice? ripostou indignado. Não respondi-lhe e ele Atão cumo é que se chama? E eu Mariquinha. E ele Ó Mariquinhas! Nada a fazer, portanto. O H. ainda o avisou, não podes falar assim que confundes os homens e isto apenas para ver se ele entendia que, pronto, o Nortês é giro e tal, mas do lado de baixo do Equador é tão incompreensível como a língua magiar. Ele riu-se muito e disse Agaora é que dessestes aí uma palabra certa sendo que sempre que queria dizer algo anunciava que ia dezer uma palabra, mesmo que fossem frases inteiras ou parágrafos Agaora bou dezer aqui uma palabra. Certo é que sua capacidade discursiva ficava aquém do grande líder cubano mas ainda assim aquela palabra durava uns quantos minutos, directamente proporcionais à suculência do almoço e foi precisamente num almoço que atestei o perigo de os deixar sozinhos ao Deus dará por esse Brasil fora.
A Miss Afurada adorava bitéla e vá de pedir sistemática e insistentemente bitéla. Sempre que os empregados na churrascaria lhe apresentavam outra carne que não a sua bitéla respondia Num quero. Quero é bitéla! Olha, traz-me bitéla. A bitéla tardava em chegar. Talvez se tivesse pedido costela de boi a bitéla chegasse. Nada. Ela insistia despreocupada com o receptor da mensagem. Que lhe interessava como se designava a carne da sua perdição em Terras de Vera Cruz, se ela queria mesmo era bitéla? Estava ela a chamar a bitéla quando lhe colocaram uma bebida colorida na frente, um coquetel de frutas. A mulher ficou estupefacta, olhando para um lado e para outro Mas eu num pedi isto. Qué isto? Era a bitéla.

8 comentários:

  1. Hilariante esta crónica fonética dos da Afurada de férias em terras de Vera Cruz :D

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  2. ahahahaha
    Mais outro texto fabuloso!

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  3. Não há explicação para as coisas que eles diziam. Às vezes nem podia olhar para o Hélder para não nos perdermos de riso. Bjs

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  4. olha que para nos do Norte o sules tambem e interessante,oh minha senhora
    e essa grosseirice de que falas infelizmente percorre o pais de norte a sul

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  5. Obviamente e infelizmente a gosseria é internacional, não conhece fronteiras nem credos, mas a complexidade do vosso linguajar é muito castiça. Não vos amofinais ;-)

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  6. Já vivi em Lisboa e agora vivo em V. Castelo, portanto o meu sotaque deve ser de Coimbra. ;)

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  7. O meu deve ser mais a Norte. Os meus pais são de Viseu, Vouzela e Santar, mais propriamente, a minha avó paterna brasileira, eu nasci em Lisboa e vivo na Saloiolândia desde sempre. Que será que isto dá? ;-)

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