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terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Com flores e livros

E os olhos grandes no regaço, as pernas cruzadas sobre a cama, junto a uma janela que se sabe ter Lisboa lá fora, de Lisboa nada se vê, porém. A cama num canto da enfermaria. Em redor, pacientes bem mais idosas, aparentemente bem mais enfermas, a memória que se me resvalou sem que lhe pudesse valer, sem que me pudesse valer a mim própria, de novo a vontade de dizer o que já não tem sentido, Vá Papá, anda, põe-te bom para irmos a Viseu. Passou esse tempo. Transporto-o apenas comigo na languidez destes dias sem fim.
E os olhos que se riram à minha entrada, duas cabeças que se voltaram Olha a senhora professora! e a J., feliz por me ver, ergueu-se um pouco mais na cama e beijou-me com um sorriso como poucos. Estendi-lhe a gerbéria laranja, mesmo sabendo que não poderia ficar com ela. De novo o sorriso, de novo, ó setora, não era preciso e depois o livro, um dos meus preferidos, para que matasse o tempo inútil naquela enfermaria Ó setora, mais coisas, setora? Desembrulhou o livro com cuidado e carinho. Virou-o e, com atenção, foi lendo as letras na contra-capa. De longe, eu via apenas os olhos de Chico Buarque lá no cantinho inferior esquerdo. E depois a conversa de circunstância Ai, senhora professora, isto para mim foi uma facada no peito... disse a mulher levando a mão ao dito. A senhora professora lá tentou acalmar a histeria despropositada da mulher Mas, pronto, agora já se sabe o que é… e o padrasto Ah, pois, mas é para toda a vida, já viu?
A J. alheou-se temporariamente da conversa idiota e manuseava o livro que eu lhe oferecera com cuidado, atenta e curiosa. Acrescentei Eu já tinha reparado que a J. estava muito magrinha e o padrasto Sabe o que é? Mania das dietas é o que é… Esbocei um sorriso tão inane como a conversa daqueles dois, acrescentando que hoje em dia a investigação na área da diabetes já está muito avançada e que se prevê a cura. A mãe rejubilou Ai, senhora professora, ainda bem que diz isso… Mas sabe ela já andava mal, mas é teimosa… sorri-me no limite da paciência, Sabe que um teimoso nunca teima sozinho… Ah pois isso é verdade, disse a mulher. Sabe deus, alá e jah o que engoli para não dizer àqueles dois que a J. não precisa de remoques e recriminações, que não ficou diabética por vontade própria. Nestas idades é normal a teimosia, adiantei e depois a voz eriçou-se-me sem controlo mas olhe que tem aqui uma filha de ouro, ajuizada, boa aluna… a mãe concordou Ai lá isso é verdade… e mais uma vez a necessidade de engolir palavras perante tamanha hipocrisia da mãe.
A J. continuava semi ausente. Oscilava entre o bouquet singelo e o livro no regaço. Soltou Tão giro, setora!, tocando com o polegar e o indicador numa das verduras que acompanhava a gerbéria São as minhas flores preferidas... Quem sabe, sabe, disse-lhe brincando. E agora vou-me, linda. Um beijo grande e um abraço bem apertadinho. Que tudo na vida da J. se pudesse resolver com flores e livros e nada lhe faltaria.

6 comentários:

  1. :')
    Bjos grandes a ti. E para a J.

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  2. Ser professor é muito complicado às vezes, e não poder fazer nada pior ainda. Beijos, meninas

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  3. Beijocas à J.

    PS: vá lá cuscar o seu mail ;)

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  4. Ontem não tinha tido tempo de ler este texto, mas hoje não me escapou.
    Espero que a J. não demore muito lá pelo hospital...
    Beijola.

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  5. As melhoras para a J. Muito sofre uma professora, e disso não entende nada a senhora sinistra da educação.

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