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terça-feira, 1 de maio de 2007

Conversas além

Oh, senhor Joc, por aqui? Perguntou o meu pai. Chega a hora de todos, como sabe respondeu o senhor Joc lacónico. É verdade, mas também lhe digo, senhor Joc, viver assim não era viver atirou-lhe o meu pai, resignado com a sua nova vida Sofrer não vale a pena. O senhor Joc concordou, não estava muito palavroso, ainda atordoado pela viagem. O meu pai, por seu lado, tinha já tido o seu tempo de adaptação e agora corria levezinho pela eternidade. Pensou consigo O Joc hoje não está para conversas… mas estava curioso e quis saber mais E diga-me, como estão as coisas lá por baixo? O senhor Joc encolheu os ombros, terá pensado Mas logo quem eu havia de encontrar… e balbuciou algo acerca das dificuldades da vida terrena. O meu pai continuou Então, e diga-me, senhor Joc, a empresa? Têm enviado as boas festas à minha mulher? Continuam a levar-lhe um bolito rei pelo Natal? O senhor Joc ruborizou um pouco, na eternidade não há mentiras, portanto, entre dizer a verdade, afirmando que a empresa a que o meu pai deu a vida e foi explorado até ao tutano, o que certamente terá acelerado a sua doença, não mais quis saber da minha mãe e engendrar-lhe uma desculpa, preferiu a omissão e emitiu uns sons imperceptíveis. O meu pai pensou Joc, Joc, estás-me a mentir, Joc e insistiu Têm-lhe levado o bolito rei? É que o senhor sabe, não é pelo bolo-rei, ela nem é muito apreciadora, é mais pela atitude, compreende… O senhor Joc desculpou-se com a crise e o deficit. O meu pai murmurou Palavra de honra, não têm vergonha… não me diga que não têm uns tostões para isso? Nem um telefonema, um cartão de boas festas? O senhor Joc empalideceu. O meu pai disse-lhe Já quando eu lá estava, tinha chamado atenção por causa do Vaz, o homem reformou-se e nem uma palavra… mas também o que seria de esperar? O senhor Joc neste ponto estava já sem palavras e carecido de desculpas plausíveis para a indelicadeza. O meu pai insistiu com as notícias da vida terrena E ouvi dizer por aí que o Sócrates não é engenheiro afinal e que andou a mentir… Pois, pois, parece-me que sim. O senhor Joc pensou Mas o homem que nunca mais se cala… e resolveu questioná-lo também Então e o senhor, como se tem dado por aqui? O meu pai respondeu lesto Olhe cá vou... O São Pedro não me larga com o Boletim Celestial, faço-lhe a revisão, sabe? É erro que ferve e muito bem escreve ele para quem foi pescador, coitado, sem instrução. Claro que a convivência com o JC também o ajudou mas desde que o João Paulo II chegou cá cima, nem lhe digo nada… o boletim vai de mal a pior! Olhe, até parece o pasquim lá da terra… É tudo contra o aborto e o uso do preservativo… Quando eu vim já estávamos no século XXI, caramba, depois admiram-se das igrejas estarem vazias. Santo Deus! Ele e a irmã Lúcia andam sempre a cochichar. Foi um alívio para a mulher, coitada, ao menos aqui sempre pode falar. Às vezes para desanuviar, vou ali dar uma palavrinha ao Cunhal, e lá está ele sempre com a União Soviética. A URSS isto e a URSS aquilo... Anda para aí à procura do Lenine mas ele foi com o Che Guevara para o Primeiro de Maio lá para as portas do Inferno. O senhor Joc pensou Mas o homem não pára de falar?!
O meu pai despediu-se do senhor Joc, delicadezas e salamaleques adequados à estirpe do recém-chegado e que sempre pautaram as relações de ambos. Na eternidade há liberdade e, na liberdade do meu pai, o senhor Joc não estaria certamente incluído. Bastaram-lhe as palmadinhas nas costas em tempo de vida. Agora que procurasse outro. Não há mal que sempre dure.

4 comentários:

  1. :)
    Só tu! Este encontro "celestial" está lindo!... Quanta verdade por trás do humor!... Jinhos

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  2. Obrigada por serem leitores tão dedicados.
    Bjs

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