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terça-feira, 14 de agosto de 2007

Reduce, reuse, recycle

A empregada cá de casa é uma mulher trabalhadeira, arrumadeira e empreendedora, com energia de furacão no que toca à velocidade de limpezas e arrumações e com o seu toque de génio no que respeita à reutilização de tupperwares e caixas. Uma qualquer situação em que seja necessário raciocínio rápido e uma solução imediata, aí está ela e, foi por isso que, um destes dias, dei com um pacote de arroz fechado com uma mola de roupa e as estantes da despensa amarradas com sacos de plástico de uma grande superfície, enquanto tardava o arranjo efectivo e duradouro. Caso não se encontre o tupperware amarelo, aquele exactamente onde cabem os queixos frescos encaixadinhos como peças de puzzle é porque estará certamente algures a servir de continente para uns quaisquer objectos. Uma coisa é certa, raramente fica sem reacção e para qualquer mal que se lhe ponha ao caminho nesta cruzada doméstica, encontrará uma solução rápida e aparentemente eficaz. Vive inconsolável com o facto de não haver lixívia cá em casa, é certo, e, a espaços, vai largando o queixume, que pronto, com lixívia é que aquilo ficava bem limpo. Pois ficava, mas não temos e não temos pena.
Quando lhe peço para ter cuidado com o aspirador, porque foi o meu pai que mo ofereceu, ela não se dá por achada e responde-me com ar doce e carinhoso, regra geral acompanhado por um pequeno suspiro lamuriento que o meu pai me deu também a possibilidade de poder comprar outro, sortuda eu, o que não sendo totalmente mentira, me fez pensar que valor estimativo não é sequer um conceito para este ser peculiar. A prova dos nove veio quando me contou que alguém tinha perdido um anel, mas que não era como os meus, era um dos outros, sendo que um dos outros é de ouro amarelo e transbordante de brilhantes, presumo. Os que habitualmente ela vê cá em casa espalhados entre o prato da balança e a mesa-de-cabeceira têm formas voluptuosas, detectam-se à légua, mas materiais refulgentes não são a sua característica distintiva, logo não valem coisa nenhuma.
Estaria cá não há muito, quando, um belo dia de limpezas, cheguei ao meu quarto e vi a Senhora do Ó do Mestre José Franco, oferecida pela minha mãe e pela Dinha, a servir de amparo para os cortinados, entalados que estavam entre a parede e a santa, orgulhosamente afagando a barriga rotunda com as mãos beatíficas. Fiquei lívida, com palpitações, as veias a latejar nas têmporas e uma voz interior obrigava-me a soltar uns quantos impropérios. Serenei a voz e delineei uma estratégia. Nomear a minha mãe e a Dinha, dizer que aquela peça é única e que tem um valor estimativo incalculável de nada serviria, portanto, disse-lhe apenas que era uma peça caríssima e pedi-lhe para não mais usar a Senhora do Ó como suporte para cortinados. A mesma sorte não teve o cesto das molas. Não tendo sido oferecido por ninguém, certamente por o meu pai me ter dado a oportunidade de poder comprar outro, quando se resvalou no chão por artes de berliques e berloques, foi liminarmente deitado no lixo e a substitui-lo tenho agora um saquinho de papel duma perfumaria conhecida. Imaginação não se pode dizer que lhe falte. É melhor assim do que ter a Senhora do Ó no parapeito da cozinha com as molas pregadas no manto, mesmo à mão de semear, prontas a utilizar.

10 comentários:

  1. :) Que texto fantástico (nada de novo, portanto). Gostava de saber escrever com metade do teu jeito (a inveja é uma coisa muito feia, eu sei :op)
    Usar as molas da roupa para fechar pacotes é muito normal.
    Bjinhos

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  2. Tens um talento ímpar para captar e descrever as características das pessoas com quem convivemos. Não tens ido à mercearia?

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  3. Obrigada! Não tenho ido muito à mercearia, mas pelo que vejo quando passo de carro, não tem havido muita clientela por lá. Desde que a irmã da dona está de baixa por causa das costas o estabelecimento nunca mais foi o mesmo ;-)

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  4. Infelizmente esse tipo de mentalidade e muito prevalente em Portugal.Como e que correram as coisas em Inglaterra?

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  5. Correu tudo muito bem mas foi tudo a correr mesmo e muito :-)

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  6. Excelente crónica. A vida a pulsar em cada linha deste texto.
    Parabéns.

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  7. Este comentário foi removido pelo autor.

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  8. Como diz ali mais acima a Fantasma, a excelência do teu texto não é "nada de novo". :)
    Novidade, novidade só a minha grande curiosidade sobre como escreverias sobre mim. Grande, mesmo! :))
    Beijola.

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  9. Carlota, mas que tens tu, melher? Também usas a Senhora do Ó como suporte de cortinados?

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