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segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Fintar Hades

Dezembro. Frio. Cinzento. Húmido. O combustível de que se alimentam os estados de alma sombrios que atraem as maleitas do espírito, sugam o entusiasmo de dias vindouros e eliminam a esperança de céus azuis de dias cálidos e bondosos. E se a invernia tem algum propósito, será apenas o de contraste bruto, para que os dias bons sejam ainda melhores, os mais solarengos ainda mais luminosos, os mais cálidos ainda mais abençoados.
O augúrio de acontecimentos tenebrosos começou naquele mesmo dia com a passagem à porta da mercearia. Um sinal inequívoco no portão que dava acesso para um pequeno pátio interior, guardião maioritariamente de laranjas e maçãs, ocasionalmente de abacaxis e mangas e, aos Sábados, de coroas imperiais e gerbérias, indicava que a senhora da foice tinha feito das suas, ceitoura na mão, recolhida no manto, e colhido algum dos entes queridos das três gerações de mulheres administradores, gestoras, empregadas, limpadoras e zeladoras do estabelecimento. As palavras depois, no regresso a casa, Morreu a Avó Paulita. O tom de voz descendente tombado por um lamento, humedecido pelas lágrimas que ninguém viu. Morreu? Como morreu a avó? Sei lá. Morreu. Passei à porta e estava lá um sinal, um anúncio daqueles da casa funerária. Ora essa. Ainda ontem vi a mulher, retorqui Não pode ser. Como se a morte se fizesse sempre anunciar Vou aí. Vou passar por aí. E por saber ficou se houvera aviso de recepção para o infeliz acontecimento. Anunciara-se de facto, a senhora da foice? E se não o fizera, como se atrevia, desavergonhada e intrometida? Alguém a houvera chamado, por acaso? E assim se continuou no ano soturno que findava, e assim se prolongou a cogitação Mas como? Pobre avó Paulita. Determinou o destino a ausência do lugar malfadado por uns dias, dias em que rotunda senhora permaneceu na mente, defunta e enterrada, vestida de negro e sisuda, um rectângulo de cetim branco rematado com renda sobre o rosto finado e a meia dúzia de filhos, outra meia de netos e uns quantos genros desgarrados em prantos vários Ai minha rica mãe! Ó minha rica mãezinha. Pobre mulher. Parecia tão saudável. E assim era. Mais saudável que simpática. Mais vivaça que magra. Mais rija que sorridente. A avó Paulita era um daqueles seres únicos, benza Deus, agora falecida, coitadinha da senhora, que nos orgulhávamos de conhecer. Além de pôr as filhas na ordem, duas pelo menos, o filho doente que era um c***s no dizer da filha do meio, e ter umas mãos de ouro com que amassava o pão, um verdadeiro deleite para os habitantes da aldeia, quente e perfumado e, à semelhança da sua progenitora, forte e resistente, detinha o cargo indestrutível e firme de matriarca respeitada a quem bastava um olhar severo e umas duas palavras para se fazer obedecer. Também por isto, a avó Paulita deixara saudades, muitas saudades, e a certeza de se regressar à mercearia de olhar pesado, as palavras trôpegas na garganta e alma pesarosa na ausência. Algum dia seria, porém, que na morte sempre se diz que tem de se andar para a frente, andar, já se vê, que só os mortos morrem e retomar os afazeres para que a ausência se amacie e se esbranquice depois como uma nuvem de fumo distante. E assim foi. A mercearia repleta empurrava os fregueses para a saída, enquanto as duas filhas, a mais velha e a do meio, aviavam a freguesia turbulenta. Pobre avó. Logo havia de se finar. Um ouvido apurado. Seria? No burburinho da mercearia congestionada três letrinhas sobressaíam inequívocas MÃE? Mãe, pois. Um pescoço que se ergue, os olhos interrogativos que se procuram e eis que, vinda do além, surge a avó Paulita. Impassível. Caramba. A admiração subiu a pique. A avó Paulita fintara a senhora da foice Julgas que és mais teimosa que eu? e regressara triunfante da batalha com a cadavérica, embatucada, enfezada, mafarrica, malfadada ou isso ou tinha sido a mãe da avó Paulita que se finara. Quem disse que eram apenas três gerações de mulheres? A avó Paulita ficou na história como a única pessoa que regressou do além. Quem derrota Hades deve morar no Olimpo mesmo que o Olimpo esteja sito na mercearia da aldeia.

foto: minha

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7 comentários:

  1. Belo texto, L. Mas qual o Orfeu que a resgatou de Hades?

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  2. Obrigada, Aventino
    Pode ser que uma nova crónica responda a essa questão ;-)
    É incrível mas a mãe ou sogra da avó ainda era viva, é caso para dizer são mais que as mães...

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  3. Adoro esta fotografia, Leonor. Se eu a tivesse conhecido antes tinha-te pedido para me deixares usá-la na capa do meu livro, porque é exactamente o espírito do livro (Gente do Sul). Mas fica para a próxima.
    Beijinhos

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  4. delícia de crónica, esqueci-me de dizer...

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  5. As crónicas da mercearia têm todas fotografias da aldeia. Um dia andei de máquina em punho à turista :-)

    Obrigada

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