Naquela segunda-feira de Carnaval ficou claro o que a minha mãe apregoara pouco tempo depois da sua reforma: reformara-se, concomitantemente com o uso de relógios e a leccionação de mais uma hora lectiva que fosse – como a compreendo e apoio-, das línguas estrangeiras.
Daquela vez em que na compra de uns sapatos no país vizinho, a que fomos parar por via duma encrenca da companhia de aviação, a teima incidia sobre as cores dos ditos sapatos, ainda se julgou que, dado o adiantado da hora e cerca de apenas dez minutos disponíveis para comprar o líquido das lentes de contacto que ficara na mala de viagem num terminal em Barajas - os sapatos saltaram-nos aos caminho- o recurso ao português se dera por via das contingências. Quando em Budapeste em pleno Mercado de Natal, o português surgiu de novo, como resposta pronta ao magiar que recebeu de troco juntamente com as moedas, não havia muito mais dúvidas perante o óbvio que ela própria assume: o fim irredutível das línguas estrangeiras como meio de comunicação. Naturalmente, a minha mania de tentar arranhar quase tudo o que é língua veio facilitar esta decisão da minha mãe e, portanto, é comum o recurso a esta vossa serva das letras para deslindar mistérios vários ou apenas contendas mínimas. Vai lá tu. Pede isto aquilo ou aqueloutro. Pergunta quanto é. No caso dos sapatos não foi necessária a minha intervenção, de resto, eu própria tinha um par para comprar, a coisa resolveu-se pacificamente. Na questiúncula sobre o troco em forints naquele Dezembro menino, dispensaram-me de novo, mas no que respeita à manhã ensolarada desse Fevereiro carnavalesco na provavelmente mais bela praça e cidade da Europa, não só recorreram a esta vossa escriba, como lhe imploraram a intervenção e, já se sabe, o que é que uma filha não faz por uma mãe? Uma filha faz tudo pela mãe e o tudo pode implicar o pedido de um frito que houvéramos visto repetidas vezes pela Sereníssima, incluindo uma boa dúzia de anos atrás em Burano no dia em que corremos atrás do mais improvável meio de transporte que se alcança dando corda aos sapatos: o barco. Nesse tempo a minha mãe ainda não se tinha reformado das línguas estrangeiras e tudo correu sem incidentes. O mesmo não foi válido quando naquela manhã límpida de céu azul sem réstia de névoa ou cinzentude, depois da visita à Basílica de São Marcos e da subida à Campanile, sentadinhos na Praça de São Marcos, a minha mãe viu passar os fritos, os ditos e desejados fritos, no remate de uma das mais belas manhãs de viagem. E quem? Quem havia de ser escolhida para formular o pedido ao empregado, bem aprumado e de sorriso e modos condizentes com o tempo abençoado? Aqui há os fritos que a tua mãe quer... Portanto, saca aí do italiano, que é tão bom como o castelhano e o castelhano tão bom como o de todos os portugueses. Ora frito, frito, frito? Fri… qualquer coisa. Quando o empregado chegou, pedi-lhe triunfante Una frittata di carnevale, com os salamaleques adequados ao local e, claro, o homem questionou Ai queres una frittata? Una frittata, é isso que queres? Fritelle! Fritelle di Carnevale! E isto com um sorriso largo e bem-disposto, que se repercutiu nos meus companheiros de jornada, também eles muito divertidos. Quando a conta veio, dois fritelle di Carnevale, três cafés, muita beleza e acalmia, muita fantasia de Carnaval e muito sol depois a iluminar-nos como à praça, ficou claro que no Quadri os erros linguísticos pagam-se caros, mas nessa altura, a minha mãe que se reformou para as línguas estrangeiras, acorreu para pagar a multa da sua menina, que uma quantia assim, valha-me deus, alá e jah, além de dar para fazer fritos para a vizinhança inteira, só pode ser multa.
Daquela vez em que na compra de uns sapatos no país vizinho, a que fomos parar por via duma encrenca da companhia de aviação, a teima incidia sobre as cores dos ditos sapatos, ainda se julgou que, dado o adiantado da hora e cerca de apenas dez minutos disponíveis para comprar o líquido das lentes de contacto que ficara na mala de viagem num terminal em Barajas - os sapatos saltaram-nos aos caminho- o recurso ao português se dera por via das contingências. Quando em Budapeste em pleno Mercado de Natal, o português surgiu de novo, como resposta pronta ao magiar que recebeu de troco juntamente com as moedas, não havia muito mais dúvidas perante o óbvio que ela própria assume: o fim irredutível das línguas estrangeiras como meio de comunicação. Naturalmente, a minha mania de tentar arranhar quase tudo o que é língua veio facilitar esta decisão da minha mãe e, portanto, é comum o recurso a esta vossa serva das letras para deslindar mistérios vários ou apenas contendas mínimas. Vai lá tu. Pede isto aquilo ou aqueloutro. Pergunta quanto é. No caso dos sapatos não foi necessária a minha intervenção, de resto, eu própria tinha um par para comprar, a coisa resolveu-se pacificamente. Na questiúncula sobre o troco em forints naquele Dezembro menino, dispensaram-me de novo, mas no que respeita à manhã ensolarada desse Fevereiro carnavalesco na provavelmente mais bela praça e cidade da Europa, não só recorreram a esta vossa escriba, como lhe imploraram a intervenção e, já se sabe, o que é que uma filha não faz por uma mãe? Uma filha faz tudo pela mãe e o tudo pode implicar o pedido de um frito que houvéramos visto repetidas vezes pela Sereníssima, incluindo uma boa dúzia de anos atrás em Burano no dia em que corremos atrás do mais improvável meio de transporte que se alcança dando corda aos sapatos: o barco. Nesse tempo a minha mãe ainda não se tinha reformado das línguas estrangeiras e tudo correu sem incidentes. O mesmo não foi válido quando naquela manhã límpida de céu azul sem réstia de névoa ou cinzentude, depois da visita à Basílica de São Marcos e da subida à Campanile, sentadinhos na Praça de São Marcos, a minha mãe viu passar os fritos, os ditos e desejados fritos, no remate de uma das mais belas manhãs de viagem. E quem? Quem havia de ser escolhida para formular o pedido ao empregado, bem aprumado e de sorriso e modos condizentes com o tempo abençoado? Aqui há os fritos que a tua mãe quer... Portanto, saca aí do italiano, que é tão bom como o castelhano e o castelhano tão bom como o de todos os portugueses. Ora frito, frito, frito? Fri… qualquer coisa. Quando o empregado chegou, pedi-lhe triunfante Una frittata di carnevale, com os salamaleques adequados ao local e, claro, o homem questionou Ai queres una frittata? Una frittata, é isso que queres? Fritelle! Fritelle di Carnevale! E isto com um sorriso largo e bem-disposto, que se repercutiu nos meus companheiros de jornada, também eles muito divertidos. Quando a conta veio, dois fritelle di Carnevale, três cafés, muita beleza e acalmia, muita fantasia de Carnaval e muito sol depois a iluminar-nos como à praça, ficou claro que no Quadri os erros linguísticos pagam-se caros, mas nessa altura, a minha mãe que se reformou para as línguas estrangeiras, acorreu para pagar a multa da sua menina, que uma quantia assim, valha-me deus, alá e jah, além de dar para fazer fritos para a vizinhança inteira, só pode ser multa.
Praça de São Marcos, Veneza
foto: minha
E como me sabe bem esta reforma... (claro quando não estás por perto lá terei que recorrer ao inglês... pelo menos, excepto no País vizinho - aí recuso-me a falar outra língua que não a minha...).Este episódio é memorável e até foi muito agradável pagar a multa...:) tão agradável como provar os fritelle no Quadri olhando a Praça de S. Marcos...
ResponderEliminarJinhos
Oh! Não sabia quem era a Teimosita!
ResponderEliminar(E que fome me fez este post.)
É pois. Olha a história da teimosita aqui ;-)
ResponderEliminarMas a multa não foi leve, embora tenha valido cada cêntimo :-)
ResponderEliminarEsta praca consegue ser impressionante por nao surpreender. Se fores a uma webcam, as pessoas realmente parecem pombos, os tais que se encontram por todos os cantos da bendita cidade à tona plantada...
ResponderEliminarEu acho Veneza uma cidade siberba, foi a segunda vez que lá estive e ainda achei mais bela, esse pairar dos visitantes deve ter a ver com a contemplação. Obrigada pela visita :)
ResponderEliminarE não houve uma orquestra a acompanhar os fritelli?
ResponderEliminarTalvez a mais mágica das lembranças de viagem que tenho na memória seja um café na praça de S. Marcos ao fim da tarde, ao som de uma orquestra de rua, a fazer horas para entrar na catedral "exactamente" à hora em que o poente entra pelas janelas e faz um incêndio de ouro, lá dentro. Inesquecível. Mas Veneza, toda ela, é uma maravilha.
... sentei-me ali naquela cadeira-biblioteca, e fiquei a ler o post dos frittis (seria como eu teria inventado) e do Bob Marley ... e depois desta agradável pausa, tenho que voltar ao trabalho ...
ResponderEliminarAté breve!
Sinapse
Não houve música, Ana, mas foi uma manhã inesquecível.
ResponderEliminarBoa, Sinapse :-)