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quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Receita de leitura

Nefertiti: seu olhar de pedra parado há milénios, esfíngico. Uma mosca pousara no ombro de Nefertiti, porque no ângulo do seu ombro corria uma brisa soprada pela ventoinha suspensa do tecto, na sala 48 do Museu do Cairo. Seu olhar lazúli olhava-me, sereno, sem curiosidade nem medo - um olhar quieto e líquido. Duas da tarde, no Museu do Cairo. Pelas janelas de ripas de madeira chegava o rumor espesso da rua. Catorze milhões de egípcios dormiam nas sombras e nos passeios das ruas do Cairo, esperando a passagem sofrida das horas do calor e do Ramadão. Duas da tarde, catorze milhões, 36 graus à sombra.
Uma gota de suor escorria agora da testa de Nefertiti. Lentamente tirei o lenço do bolso das calças e limpei-a. Não sabia que as estátuas transpiravam. Imaginava-as frias e suaves na sua placidez de pedra e ónix. Mas nunca vira o Cairo em Abril, quando o sufoco quieto do ar traz apenas uma leve, longínqua lembrança, do restolhar líquido do Nilo.
O Nilo – o rio mais longo e mais belo do mundo. Tudo começa e acaba neste nome de duas sílabas.


Miguel Sousa Tavares, (2004), Sul, Lisboa, Oficina do Livro.

Composição
Sul é uma compilação de crónicas de viagem de Miguel Sousa Tavares coligidas num só volume. Longe dos roteiros habituais e do estilo dos guias de viagem comuns, Sul leva-nos por paragens aquém e além fronteiras, sempre com a escrita escorreita do escritor e a sua forma única de ver o mundo.

Indicações
Sul está recomendado para os amantes de paragens longe da porta de sua casa, e para os apreciadores de uma boa prosa. É muito bem tolerado por todo o tipo de viajantes: os de mochila às costas, os sofisticados que não passam sem o hotel de cinco estrelas, os amantes de aventuras, os curiosos de culturas diferentes e os que sentados no sofá viajam através de imagens e leituras diversas sobre o mundo lá fora.

Precauções
Não se aconselha a leitura de Sul a indivíduos inquietos e com vontade acentuada de partir mundo afora. Caso tenha episódios recorrentes de tédio perante o quotidiano e seja acometido com frequência do ímpeto de galgar fronteiras e países, deve ler o livro com algumas reservas. Se der consigo à procura de folhetos de viagens e informações sobre os locais a visitar ou num estado absorto a banhar-se no Índico ou contemplando Nefertiti no Museu do Cairo deve abrandar a leitura para evitar danos maiores.

Posologia
Deve ser lido ao rimo de cada leitor, não obstante, recomenda-se uma leitura tranquila e pausada para melhor saborear cada viagem.

Outras apresentações
Se experimentou bons resultados com Sul, recomenda-se a leitura de outros relatos de viagens ou a continuação da escrita de Miguel Sousa Tavares com Equador.

8 comentários:

  1. Devo dizer que ... adorei viajar com o MST!!!!

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  2. E recomenda-se também ignorar completamente a arrogância já demasiado conhecida do autor, e apreciar a obra só por ela. Porque este é um daqueles casos em que não convém confundir o autor com a sua obra.

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  3. Gostei muito desse livro porque sou fascinado por memórias de viagem. E também porque já percorri parte do roteiro do Nordeste.

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  4. Ainda bem que a syrin disse o que disse, porque eu ia dizer que nunca li nada do MST porque não posso com o tipo. Preconceito, eu sei...
    Bem, o Equador também me recusei porque para além de geralmente não gostar de romances históricos fiz finca pé que se toda a gente lia, eu não ia ser toda a gente :op

    Parece que o Sul se recomenda mesmo... Excepto: "Não se aconselha a leitura de Sul a indivíduos inquietos e com vontade acentuada de partir mundo afora." É que corro o risco de mandar tudo às urtigas e fugir :)

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  5. Para mim, as crónicas de viagem são o formato em que o MST melhor se enquadra e mais brilha. Este livro SUL é um bom exemplo disso. Adorei lê-lo, talvez porque também sou um espírito inquieto e meio ave de arribação. Mas também gostei do Equador. Este último ainda não li e, talvez pelo que tenho ouvido, estou com preguiça de abri-lo.
    Um beijo

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  6. Ah, e já tinha saudades destas tuas "receitas de leitura", Leonor.
    Bela fórmula!

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  7. Obrigada a todos, também gosto do MST cronista, embora ache que ele escreve sempre bem. Quanto à arrogância nada a fazer, por enquanto ainda não é impeditiva de me embrenhar nos livros dele. Quem sabe se não vem o dia... ;-)

    As receitas de leitura são trabalho para escola, Ana, esta já é a quinta. São publicadas em papel e no blogue da escola.

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  8. Li no Verão de 2006 e adorei.
    Inspira-nos e de que maneira!

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