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quarta-feira, 23 de abril de 2008

Uma questão de gratidão

Sobre o corpo apenas o necessário. Nos pés a liberdade imensa que as sandálias estivais permitem. Do corpo o aroma do protector solar mesclado com o banho de mar, água fria estava naquele dia de Julho menino. O dia que se aconchega no regaço da tarde, a praia lentamente para trás, o mar mais distante, a areia que sem sucesso se sacode e uma nova etapa do dia que se inicia com o périplo necessário para as mais comezinhas tarefas algures na cidade a Sul. Os olhos focam com mais acuidade e, de entre as lojas em fila, salienta-se aquela. Uma livraria? Uma livraria. Entro ávida, não sem antes de espreitar a montra. Os livros podem ser um vício incurável, uma fome súbita de saciedade difícil.
A livraria era, na verdade, uma livraria. De corredores estreitos, quase a lembrar uma biblioteca, com estantes recheadas até ao tecto, um pequeno labirinto, onde quase se podia jogar às escondidas entre Hemingway e Saramago, Teolinda Gersão e Philip Roth, os olhos a encontrarem-se de permeio pelas lombadas ordeiras. Não fora o espaço tão exíguo e assim poderia ser. Ao que ia, perguntaram-me. A resposta saiu desajeitada, apenas o vício me levara ao lugar, que de livros para a semana a Sul estava bem servida. E porque de uma livraria se tratava, não uma loja de livros, a empregada solícita não desistiu em mostrar as últimas novidades, o que haviam recebido bem visível nos caixotes abertos pela livraria, uma deferência esquecida para quem frequenta espaços onde os livros são apenas deixados à mercê do leitor sem a menor dedicação dos empregados desse ofício moribundo de bem vender livros e bem os tratar. Apareceu o dono, entretanto. A conversa estendeu-se a outros autores, ao que bem se vendia, ao que recomendava, ao que acabara de sair e que me foi obrigando a passeios sucessivos entre as estantes e caixotes, o perfume que se soltava dos livros acabados de chegar. Lá fora a tarde descia serena, não há como os fins de tarde estivais para harmonizar corpo e espírito. E mesmo com a mesa-de-cabeceira suficientemente preenchida para a semana de remanso, ainda antes da enxurrada de turistas atabalhoados, a dedicação aos livros, a conversa conhecedora e a deferência com que fui recebida entraram-me certeiros no coração. Não é assim nas lojas de livros. Um livro seria, claro. Com o coração atingido seria incapaz de abandonar o local apenas com uma despedida de circunstância. Percorro o expositor da entrada com o olhar e decido-me: Kafka à beira-mar. A ingratidão é das mais execráveis faltas, um risco impensável perante tão enternecedor acolhimento.


No Dia do Livro

Esta crónica foi escrita para a PNetMulher a convite da Teresa C. a quem agradeço o convite e esta referência elogiosa.

6 comentários:

  1. Ai como tu escreves... A cada dia continuo a surpreender-me :)
    E como entendo, também eu não resisto à chamada duma livraria, e em sítios onde a língua é alguma que não falo nem entendo, entro com a esperança dos livros em inglês que "falem" comigo... Essa experiência deve ter sido muito boa.
    E fiquei com tanta vontade do calor estival, da pouca roupa, do deitar ao sol com um livro na mão... suspiro...

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  2. Muito bem!
    (Interessante essa da PTnet. Não conhecia.)

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  3. Como descrevestes tão bem essa sensação de acolhida, essa conversa que só os verdadeiros livreiros são capazes de ter conosco! Eu também não conseguiria sair de lá sem levar um livrinho...

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  4. Foi um encontro muito engraçado mesmo.
    Obrigada :-)

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  5. Lindo, Leonor.
    Já votou em nossa biblioteca à beira do mar?

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  6. Obrigada, Martha.
    Ainda não :(

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