Estava um dia de chuva, diz-se logo no início da narrativa, não um dia de sol como o desfilava na imagem à minha frente das transmissões do Carnaval de Salvador, e, ao contrário de Ivete Sangalo, Sereia não vestia de branco nem tinha um imenso leque de plumas, armado como uma auréola ao nível dos quadris, o cruzamento feliz entre a exuberância do pavão e a elegância do cisne. Sereia envergava uma fantasia em malha metálica que descia até ao chão como uma cauda reminiscente do seu próprio nome, Sereia, os seios e a barriga cobertos de purpurina prateada iluminados pela chuva de Salvador. Sereia, ao contrário de Ivete, tinha cabelos de ouro e olhos cor de mel, era uma boa dezena de anos mais nova do que Ivete, contava apenas vinte e dois, e ao contrário de Ivete, felizmente para esta, Sereia viu chegar o seu fim naquela terça-feira de Carnaval, em pleno desfile, como havia desejado, do alto do trio eléctrico na Avenida Carlos Gomes. Uma bala com a inicial do seu nome pôs fim à carreira promissora e catapultou Sereia, senão aos céus ou às profundezas dos mares de Iemanjá, ao estatuto de mito a que todas as mortes trágicas e jovens obrigam. Salvador chora inconsolável a partida inesperada da promissora estrela, assistimos ao funeral ao som do Olodum no Bonfim e perseguimos Augustão, o detective encarregue de resolver a morte precoce e inexplicável de Sereia, pelas ladeiras e ruas íngremes de Salvador. Acompanhamo-lo inúmeras vezes ao terreiro de Mãe Marina de Ogum e é também pelos seus olhos que contemplamos a Baía de Todos os Santos. Sereia é apenas o pretexto para Salvador se revelar em O Canto da Sereia de Nelson Motta, impregnado de estereótipos -música, mestiçagem e candomblé- mas com um roteiro implícito, uma viagem única à baianidade contemporânea e à qual regressaremos sempre, assim abramos as páginas do livro e a alma à escrita. Talvez por isso, este seja dos livros que mais viaja da estante para a mesa-de-cabeceira, da mesa-de-cabeceira para o sofá ao meu lado. Com ele há sempre um périplo renovado pela cidade do Salvador e um crepúsculo tranquilo sobre a Baía de Todos os Santos.
Salvador
foto: minha
Na Baixa do Sapateiro eu encontrei um dia
ResponderEliminarA morena mais frajola da Bahia
Pedi-lhe um beijo, não deu
Um abraço, sorriu
Pedi-lhe a mão, não quis dar, fugiu
Bahia, terra da felicidade
Morena, eu ando louco de saudade
Meu Senhor do Bonfim
Arranje outra morena igualzinha pra mim
Oh! amor, ai
Amor bobagem que a gente não explica, ai ai
Prova um bocadinho, ô
Fica envenenado, ô
E pro resto da vida é um tal de sofrer
Ôlará, ôlerê
Ô Bahia
Bahia que não me sai do pensamento
Faço o meu lamento, ô
Na desesperança, ô
De encontrar nesse mundo
Um amor que eu perdi na Bahia, vou contar
Ô Bahia
Bahia que não me sai do pensamento...
Na Baixa do Sapateiro, de Ary Barroso
Que bonito, como sempre, e sempre a propósito. Brevemente vou ler Gabriela, já está na mesa de cabeceira :-)
ResponderEliminar"O que é que a baiana tem?" explica Dorival Caymmi que tem muitas coisas preciosas e únicas, e "graça como ninguém". Como a própria Baía, que para mim tem a magia de Jorge Amado e a descoberta de um Brasil muito mais vasto, através dos seus olhos.
ResponderEliminarUm beijinho