Na aldeia vive o cego, senti-o um destes dias quando, estacionada à porta da tabacaria, o meu carrinho, o meu rico carrinho, o meu único carrinho azul, o carrinho que eu comprei com o meu dinheirinho levou umas fortes bengaladas e umas quantas chibatadas na parte traseira, que o cego é cego mas não é para graças nem meiguices, sabe deus o vigor na bengala.
Na aldeia mora Jesus. JC vai passando rua abaixo, ganhou peso nos últimos tempos e a última vez que o vi mais de perto estava à porta da biblioteca da escola, opinando sobre um autor. Ultimamente abandonou a bicicleta, razão pela qual se lhe arredondou o corpo, mas pão e vinho já se sabe que não é alimentação saudável, os hidratos de carbono são do piorio e o vinho tinto, além de estar carregado de calorias, se não for de boa qualidade e em excesso, provoca-lhe fortes dores de cabeça. Nada que Jesus Cristo não consiga resolver sem analgésicos. O que é uma simples dor de cabeça para quem pôs um cego a ver?
Na aldeia há o talho que emite o terço religiosamente todos os sábados ao fim de tarde, carninha benta já se sabe, chouriços vendidos ao som de pais-nossos, entremeada na ladainha de amens e graças, bifanas pesadas na toada das ave-marias.
Na aldeia vivem duas mulheres que levam as muletas a passear esporadicamente. Nada como uma caminhada ao sol para lhes limpar a humidade, evitar a ferrugem, estimular o convívio saudável entre as pobres coitaditas, que fariam em casa? Os auxiliares repousam à conversa enquanto as proprietárias correm a vida alheia a pente fino e acompanham a conversa erguendo de quando em vez as muletas uma para a outra, a extensão natural do esbracejo mexeriqueiro. Quando a dona da retrosaria se perdeu de amores por um nórdico, alvo e desajeitado nas artes fornicadeiras, e deixou para trás, não obstante, caramba, o que havia de dar à mulher, além dos filhos, os botões e os fechos invisíveis, as gregas e as fitas de nastro, as muletas tiveram um uso desmedido, primeiro no ar com uma exclamação Ah, eh pá, na me digas isso, e depois o movimento descendente da confirmação Rás ta apanha a melher e as muletas quedas até à revelação seguinte. Um desassossego.
No café da aldeia, café e pastelaria, trabalha a Frida Kahlo. Serve bicas, queques, cafés com cheirinho, minis e vende pão, bicos, no dia em que o padeiro faz bicos. Quando um dia pretérito me fiz à aldeia, a Frida Kahlo serviu-me um café, delicioso por acaso. O que lhe sobra em sobrancelhas também não falta em artes de tirar café. A Frida Kahlo da aldeia é menos morena do que a Frida Kahlo Frida Kahlo, um pouco mais baixa e, para grande sorte dela, move-se com evidente facilidade e ligeireza lá por trás do balcão no reino do bolo de arroz. A Frida Kahlo é diligente sem esbanjar simpatia, e tal como a Frida Kahlo Frida Kahlo, se não não seria a Frida Kahlo, tem umas sobrancelhas que se unem em redemoinho bem no centro. Tal com as de Frida Kahlo são farfalhudas e notam-se à légua, logo à porta do café, mas ao contrário da Frida Kahlo Frida Kahlo é parca em pilosidades no lábio superior. Num tempo em que até os homens têm sobrancelhas milimetricamente depiladas por mestres das artes depiladeiras, essa ciência oculta de bem debulhar qualquer pilosidade indesejada, tamanho sobrancelhame e ausência de bigodaça só pode ser um statement of art, uma elegia à Frida Kahlo Frida Kahlo. A aldeia é um mundo.
Na aldeia mora Jesus. JC vai passando rua abaixo, ganhou peso nos últimos tempos e a última vez que o vi mais de perto estava à porta da biblioteca da escola, opinando sobre um autor. Ultimamente abandonou a bicicleta, razão pela qual se lhe arredondou o corpo, mas pão e vinho já se sabe que não é alimentação saudável, os hidratos de carbono são do piorio e o vinho tinto, além de estar carregado de calorias, se não for de boa qualidade e em excesso, provoca-lhe fortes dores de cabeça. Nada que Jesus Cristo não consiga resolver sem analgésicos. O que é uma simples dor de cabeça para quem pôs um cego a ver?
Na aldeia há o talho que emite o terço religiosamente todos os sábados ao fim de tarde, carninha benta já se sabe, chouriços vendidos ao som de pais-nossos, entremeada na ladainha de amens e graças, bifanas pesadas na toada das ave-marias.
Na aldeia vivem duas mulheres que levam as muletas a passear esporadicamente. Nada como uma caminhada ao sol para lhes limpar a humidade, evitar a ferrugem, estimular o convívio saudável entre as pobres coitaditas, que fariam em casa? Os auxiliares repousam à conversa enquanto as proprietárias correm a vida alheia a pente fino e acompanham a conversa erguendo de quando em vez as muletas uma para a outra, a extensão natural do esbracejo mexeriqueiro. Quando a dona da retrosaria se perdeu de amores por um nórdico, alvo e desajeitado nas artes fornicadeiras, e deixou para trás, não obstante, caramba, o que havia de dar à mulher, além dos filhos, os botões e os fechos invisíveis, as gregas e as fitas de nastro, as muletas tiveram um uso desmedido, primeiro no ar com uma exclamação Ah, eh pá, na me digas isso, e depois o movimento descendente da confirmação Rás ta apanha a melher e as muletas quedas até à revelação seguinte. Um desassossego.
No café da aldeia, café e pastelaria, trabalha a Frida Kahlo. Serve bicas, queques, cafés com cheirinho, minis e vende pão, bicos, no dia em que o padeiro faz bicos. Quando um dia pretérito me fiz à aldeia, a Frida Kahlo serviu-me um café, delicioso por acaso. O que lhe sobra em sobrancelhas também não falta em artes de tirar café. A Frida Kahlo da aldeia é menos morena do que a Frida Kahlo Frida Kahlo, um pouco mais baixa e, para grande sorte dela, move-se com evidente facilidade e ligeireza lá por trás do balcão no reino do bolo de arroz. A Frida Kahlo é diligente sem esbanjar simpatia, e tal como a Frida Kahlo Frida Kahlo, se não não seria a Frida Kahlo, tem umas sobrancelhas que se unem em redemoinho bem no centro. Tal com as de Frida Kahlo são farfalhudas e notam-se à légua, logo à porta do café, mas ao contrário da Frida Kahlo Frida Kahlo é parca em pilosidades no lábio superior. Num tempo em que até os homens têm sobrancelhas milimetricamente depiladas por mestres das artes depiladeiras, essa ciência oculta de bem debulhar qualquer pilosidade indesejada, tamanho sobrancelhame e ausência de bigodaça só pode ser um statement of art, uma elegia à Frida Kahlo Frida Kahlo. A aldeia é um mundo.
imagem: minha
Muito bom, como de costume. Encanta-me sempre a tua maneira de nos contares a aldeia!
ResponderEliminarQue delícia, Leonor.
ResponderEliminar... tu és um mundo!
ResponderEliminarEssa aldeia é localizada no Alentejo?
ResponderEliminarSabes que encontrei uma Kahlo no Mont St Michel? Provavelmente a mesma irmandade...
Obrigada pela viagem.
Ainda gostava de escrever um livro com estas histórias :-)
ResponderEliminarNão, Ariadne, é às portas de Lisboa, mas a irmandade é vasta. Quem sabe se essa no Mont St Michel não seria de origem portuguesa :-)
Beijinhos a todas
Devias mesmo escrever um.
ResponderEliminarNão havia um treinador de futebol que dizia que da aldeia dele via todos os 'cristianos ronaldos' do universo?
Um dia BOM, Leonor.
:)
Não tenho editora :(
ResponderEliminarBeijinho