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segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Papéis pintados com tinta

Os livros são entes diabólicos. Uma vez metidos nas vidas dos leitores dificilmente saem. Um labirinto de sensações, um rodopio de imagens e citações, palavras soltas que se agarram firmemente à memória, cenas e personagens que passam a ser os leitores e dos leitores também. A vertigem bibliófila de que sofro impele-me a cruzar com frequência o que leio nos livros com o que vejo na vida. Acontece-me em plena conversa surgir de repente uma citação ou o livro inteiro, a personagem que pode espreitar por detrás das orelhas Chamaste-me? para o interlocutor com quem troco palavras. Quando não posso agarrá-las e enfiá-las pela orelha para o local secreto da memória de onde saíram, escondo-as na cabeleira, consegue albergar umas quantas, obrigo-as ao silêncio absoluto e continuo a conversa de circunstância. Vale tudo menos começar a debitar o que me passa pela cabeça Leste aquele livro deste daquele ou daqueloutro? Conheces o autor x, y ou z? Fizeste-me lembrar aquele livro… Antes que comecem a bocejar perante o desfile incontinente do que vivo nos livros, que atravessem a rua se me virem ao longe ou se escondam atrás das portas, quando me pressentem nos corredores, exerço uma implacável censura sobre esta minha faceta. Não raras vezes remeto-a para as conversas paralelas que ocorrem enquanto se dialoga com outrem, uma espécie de balões de banda desenhada onde escarrapacho as associações malévolas. Aconteceu-me saltar-me ao caminho na missa recente em memória do meu pai Não a ti, Cristo, odeio ou menosprezo. Lá vinha o Ricardo Reis. Acho que o sacristão o pressentiu, lançou-me um olhar de soslaio que tive de esconder o poeta na cabeleira mais uma vez. Em ambiente familiar solto os livros e não raras vezes as conversas decorrem com as interferências. A última vez que me aconteceu estava tranquila, quando ao pegar em dinheiro para pagar o almoço, concluí Agora veja lá, não gaste tudo em vinho. Esclareci de imediato a fonte, não sem antes ter sido apunhalada com um par de olhos ferozes e ofendidos. O pior foi no dia em que a minha mãe se lembrou de estender a roupa num dia de ventania assanhada e o estendal se soltou da parede. Quando apareci estava esbaforida e furiosa Fartei-me de chamar por ti, fiquei aqui presa pela corda. Teria acorrido à minha mãe sem mais, caso a tivesse ouvido naturalmente, argumento que não a convenceu. Podia ter caído com o peso da roupa lamentou-se. E o que faz uma mãe agarrada a uma corda de roupa? Questionei impaciente E por que não largaste a corda? Querias voar como a Mary Poppins? Atirou-me certeira que só o vizinho a tinha ouvido, de facto, segurava na corda e ouvia–nos paciente, e rematou que podia ter caído escadas abaixo, agarrada à corda. Tamanha convicção levou-me à segunda troca de argumentos Largavas a corda, ora essa, a roupa não é a passarola do Bartolomeu de Gusmão. Livros a mais claramente. Temo que algum dia a minha mãe leia Der Schneider von Ulm do Brecht. Os lençóis dariam umas óptimas asas.

14 comentários:

  1. nunca o conseguiria escrever desta forma mas mas dou-me por feliz de o ver assim brilhantemente explicado .. :)
    Obrigada Leonor .. esta sua leitora/admiradora "sofre" do mesmo "mal" .. livros a mais e memória de elefante ;)
    Beijinho **

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  2. Falar em "Memória de Elefante", Lobo Antunes um dia... Bem, já vi que por aqui sofremos todos do mesmo mal. O que me irrita é precisamente termos de esconder as personagens que nos assaltam nas conversas, isto se não quisermos ser apelidados de "chatos".

    Muito bem descrito todo esta angústia de cada um de nós Leonor.

    Cheers

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  3. Olá aos dois :-)

    Isto de os livros se nos meterem pela vida dentro é um problema mas acaba por ser divertido também.
    Pergunta indiscreta: que andam a ler neste momento?

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  4. é-o de facto Leonor .. e dou por mim a calar-me mais vezes que o desejaria (risos) .. Releio o Marinheiro que perdeu as graças do mar, por razão nenhuma .. e adquiri este fim de semana mais uns contos de Kipling .. (só coisinha chatas, talvez por isso tenha mesmo de me calar) ;)
    Beijinho *

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  5. Oh Leonor, mais um daqueles textos espantosos! Vê-se que a inspiração mora mesmo em ti. Sortuda!

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  6. Em resposta à pergunta que nada de indiscreta tem, neste momento "Ensaio sobre a Cegueira" de Saramago que vai ser seguido por um Lobo Antunes com "Os Cus de Judas".

    Como sou obrigado a assinar com a blogger account, fica o sítio actual:

    http://livrosemcriterio.eraumavezumrapaz.net/

    Cheers

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  7. Eu já fui assim, Leonor. Hoje em dia a minha memória já me atraiçoa, o que acaba numa coisa pior ainda: as personagens não deixam de me zurzir aos ouvidos mas eu nao sei onde arrumá-las de volta, quando as enxoto. Um problema. ;)

    O teu texto é delicioso como sempre. E os pobrezinhos do LA são outra delícia (na minha família era exactamente igual). Acho que vou levar ambos para o Porta...

    PS: Estou a ler "O Sol dos Scorta", do Laurent Gaudé. Recomendo, se ainda não leste.
    Beijinho

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  8. Zunir e não zurzir, claro. Quando começarem a zurzir a coisa fica mais séria...

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  9. Querida Leonor,
    o texto é brilhante e, para nos desculpabilizar a todos que sofremos desse mal, vinha a calhar o trecho de Borges - ou será toda a obra dele? - que vê o Universo como uma biblioteca...
    Antigamente trazia as citações à conversa com os amigos menos vocacionados e com desconhecidos. Após ser taxado por estes como pedante e encarado pelos primeiros como lunático, ainda procurei o conchego de uma participação em Comunidade de Leitores, onde, um a um, os membros falam da sua experiência de leitura de um mesmo livro pré-determinado. Pareceu-me uma clara transposição do método dos Alcoólicos Anónimos para a Literatura, pelo que retirei, aterrado. E assim me passei a resguardar-me, para debitar as linhas acumuladas a Amigos que padeçam do mesmo vício. A blogosfera encontrará aí o du bon que tenha.

    Por causa da Ana Vidal, estou a começar «A Mulher Certa», de Sandor Maraï e ainda entremeio com as notas da viagem à Rússia, de Victor Tissot.
    Beijinho

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  10. Carlota,
    Não é inspiração, é só uma maneira de ver as coisas :-)

    Obrigada, Ana, não tenho uma memória de elefante para os pormenores dos livros mas ficam-me frases e bocados.

    Bem-vindo, Paulo, e obrigada. Felizmente que nos vamos tendo para esta troca de impressões, porque se falássemos assim, citando este e aquele, ninguém nos aturava. Ainda não tive essa experiência das Comunidades de Leitores mas como Bookcrosser tive muitas vezes a sensação que éramos mesmo agarradinhos aos livros. Volte sempre :-)

    Obrigada a tod@s pelas respostas sobre as leituras. Eu estou a tentar ler O Cantor de Tango do Tomás Eloy Martínez mas ontem perdi-me pel' O romance morreu do Rubem Fonseca. Pelo meio guias de viagem :-)

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  11. É muito giro o seu texto, Leonor. Infelizmente, não tenho memória que «agarre» palavras – às vezes nem ideias. Mas tenho imensas vezes uma sensação de «déjà vu» que, depois de esmiuçada, se mostra relacionada com cenas «vividas» em leituras passadas. Houve uma altura em que cheguei a recear sofrer do «síndrome Bovary» ou «Quixote», mas como fui conseguindo distinguir a realidade da ficção… acho eu. ;-)
    Quanto a livros, estou a acabar uma viagem pelo México com o Erico Veríssimo e a bisbilhotar a correspondência das manas Mitford. Duas experiências muito interessantes.

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  12. Déjà vu tenho muitíssimo pouco mas já com as palavras é diferente. Ainda hoje me voltou a acontecer.
    Beijinho

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  13. Es bien cierto: los libros son entes diabólicos :-)

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  14. São mesmo.
    Bem-vind@, ardi :-´)

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