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sexta-feira, 7 de novembro de 2008

A primeira ou mais nenhuma

A filha chega a casa da mãe. Arremessa à entrada da porta o cansaço matinal, a ladainha de irritações, a pilha de desilusões acumuladas, fecha a porta apressadamente não vá a decepção fazer-se convidada para o almoço e entrar inadvertidamente pela frincha da porta. A filha chama Mami! A mãe não responde à filha. A filha ouve a mãe ao telefone. A filha pressente pela voz da mãe Algo não está bem. A filha ouve a voz da mãe algo inquieta, não era bem furiosa, não era bem irritada, não era bem zangada, mas algo não estava bem. A filha pensa Aconteceu alguma coisa, enquanto a voz da mãe se mantém assertiva e inflexível. A filha sabe Algo aconteceu. A filha inquieta-se Que será que aconteceu? A filha, sempre com a voz da mãe em fundo, inicia a confirmação de uma lista de possíveis energúmenos capazes de provocar na mãe o estado presente de inquietação. A filha pensa Quem foram os animais desta vez? A filha assume Foram os parvalhões dos colchões. A filha reitera Foram os anormais do clube de viagens. A filha enfurece-se Bem, se foram aquelas bestas a dizer que o Papá ganhou uma viagem outra vez… A filha conclui Se forem aqueles estúpidos é desta vez que apresento queixa na Deco. A filha tem a certeza Ai apresento, apresento, onde já se viu inquietarem a Mamã, onde já se viu ligarem para casa das pessoas a dizer que o Papá tinha ganho um sorteio como se andasse entre nós, o meu querido e saudoso Pai. A filha pragueja Estúpidos, parvalhões, bestas, anormais. A filha tem a certeza Ainda me passo e é desta que os mando abaixo de Braga três vezes. A filha sabe Ai mando, mando. A filha ouve a mãe com atenção, talvez descortine algo. A filha apura o ouvido Ora deixa cá ver, deixa cá ouvir bem… A mãe está a terminar a conversa, mas o tom de voz não muda, o tom de voz exprime a indignação. A mãe diz ao telefone. Agradecia, agradecia se faz favor. Obrigada. A mãe desliga o telefone. A filha pergunta aflita Mamã, o que foi, aconteceu alguma coisa? A mãe continua com o semblante carregado. A mãe responde Então não é que fui comprar A Viagem do Elefante, o último do Saramago... A filha responde Sim, eu sei e pensa E depois, mamã? Que te fizeram? Quem foi o energúmeno que te aborreceu? A mãe continua O livro saiu ontem. A filha concorda Pois foi. A mãe conta a história Comprei-o na livraria. A filha implica Mas que mania de ir àquela livraria, Mamã, já sabes como eles são. A mãe retorque Não é nada disso, foram até muito simpáticos. A mãe conclui E depois fui tomar café com a Dinha. A mãe remata E quando chego a casa vejo que o livro é a segunda edição. A filha pergunta E então, mamã? A mãe arremessa-lhe Uma segunda edição? O livro saiu hoje. Eu quero a primeira edição. Ora essa. A mãe não cede Não quero este. Quero a primeira edição. A filha põe água na fervura Mas se calhar esgotou, Mamã. A mãe não se dá por vencida, era só o que faltava Não esgotou nada, eles é que mandaram a segunda, diz-me a menina que para aqui só mandaram a segunda edição. Admite-se? Para a província mandam a segunda edição. Não quero! A filha acrescentou mais um elemento à sua lista de energúmenos em quem desancar, pegou nas chaves e ei-la a caminho dos distribuidores e livreiros. Uma segunda edição? É preciso ter lata. Onde já se viu.

14 comentários:

  1. que quadro fabuloso Querida Leonor :)

    Beijinho
    Bom fim-de-semana

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  2. LOL! E tu a imaginar tanta coisa :)
    Beijos!

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  3. Leonor, és a Rainha do Suspense. Qual Hitchcock, qual carapuça!
    (Não tenho memória de ter lido nada com tanta pressa em chegar ao fim!)

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  4. E tem a mãe muita razão. O livro tinha saído ontem... por amor de todos os santos e fiéis defuntos...

    Olá, Leonor.

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  5. LOL!!
    Tal mãe, tal filha...
    Já te tinha dito outro dia que és um bocado filha galinha, não já? Pelo que começo a conhecer da tua mãe (e é tudo por ti!), parece-me bem que ela dá muito bem conta do recado quando a chateiam...ó filha stressadinha;))

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  6. Lindo, como sempre! embora seja suspeita... :)
    Às vezes (muitas vezes) vale a pena refilar, sobretudo quando temos razão, como era o caso. Verdade verdadinha é que amanhã já cá tenho a minha 1ª edição.
    Jinhos

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  7. Hum... a Leonor ainda acaba como Presidente da Junta e sabe-se lá se não vem para aí uma carreira política... (riso abafado)

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  8. Obrigada pelos comentários. Como podem ver - a teimosita é a minha mãe - nada a demove. Esperemos pois a primeira edição :-)

    Patrícia, não sou só um bocado filha galinha, sou muito mas com tanta insegurança e parvo à solta, uma filha preocupa-se, pois claro :-)

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  9. Confesso que nunca tinha pensado na problemática das edições, acho que nunca comprei um livro acabadinho de sair...Mas não será que a primeira edição está quase esgotada antes de sair, devido a encomendas de instituições? Em todo o caso, fico contente por a teimosita ter conseguido o que desejava, pois claro :-)

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  10. Eu também não ligo, Ana, mas a senhora minha mãe não dá hipótese. Ainda não resolveu mas a filha dá uma ajuda ;-)

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  11. :-) Pois é, a Caminho costumava lançar os livros do Saramago com edições de cem mil exemplares, mas esta foi apenas de 50 mil. Os espertalhões fizeram, em simultâneo, uma suposta segunda edição (uma reimpressão, na verdade), apenas como jogada de marketing, para dar a ideia de que a primeira esgotou quase instantaneamente. Modernices do Grupo Leya, feitas no pressuposto de que este é um país de pategos, algo que não deixa de ter o seu fundo de verdade. Já agora, o meu é da primeirinha!

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  12. Modernices, Pedro, é bem verdade. Mas a minha mãe já tem a primeira edição, fiz questão absoluta de lha oferecer.

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  13. Ai ai...letras são letras, estejam elas rabiscadas onde estiverem...

    Gostei. A filha sente sempre na voz da mãe se algo não está bem.

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