Páginas

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Vida interrompida

Do lado de cima das ribas avistava-se a praia cheia. Surfistas com as pranchas, adolescentes espalhados no areal em meia-lua, atentos com os olhos posto no mar. Um mar imenso e relativamente calmo, um vento vindo do oceano azul empurrava o cabelo como se a vista se tornasse cada vez mais límpida, mais clara, até à linha do horizonte. E cá em cima como lá em baixo, a espera. Flores em coroa partem primeiro, depois todos eles, homens e mulheres da minha idade, com quem cresci e passei os momentos loucos de risadas no pátio do liceu e noites de boémia com muito álcool e pouco juízo, e jovens, alunos e alunas habitualmente sentados à minha frente, outros com quem me cruzo diária ou esporadicamente pelos espaços da escola. E depois de feitos ao mar, um cordão humano que surgiu espontaneamente, mãos que procuram mãos, o silêncio apenas cortado pelo rebentar das ondas deste dia claro, o bordejar de almas doridas e inconsoláveis no areal. A roda que se forma no mar pelos amigos, os pais, os irmãos, o fato de surf mais eloquente que qualquer outro trajar, as pranchas como velas que embalam almas, os corpos embalados pelas ondas agrestes do mar batido, e tecem a homenagem mais singela e sentida. Uma roda desenhada no mar. As flores ao centro. Uma salva de palmas que ecoa forte e ritmada. E depois descer ao areal e confortar a minha colega de escola com palavras nenhumas, a mãe a quem amputaram o filho, apenas os olhos que falaram, palavras trocadas à toa, as minhas alunas que se me abraçaram com o salgadiço que apenas o mar da Ericeira tem, a maresia agarrada nos beijos impotentes que lhes dei, o colo incapaz de sarar a dor ou parar os soluços. Nunca ninguém devia sofrer assim. Nunca ninguém devia sofrer.
Tinha dezassete anos, saiu de casa para testar a mota e não voltou. Morrer assim devia ser proibido.

8 comentários:

  1. Devia ser proibido ter de ver partir um filho, é a crueldade máxima nesta vida. Um beijinho grande para ti.

    ResponderEliminar
  2. Devia ser proibido ter de ver partir um filho, é a crueldade máxima nesta vida. Um beijinho grande para ti.
    fungaga

    ResponderEliminar
  3. Devia mesmo, querida, ser proibido morrer assim.

    ResponderEliminar
  4. Obrigada a todos pelos comentários. É muito triste e no dia em que escrevi este post experimentei a sensação até aí desconhecida de impotência perante a dor dos meus alunos. Acredito que todos vós, que são mães e pai (Olá Mike!) conhecem-na bem. Para mim foi algo novo, como se de nada servissemos. E depois ainda a certeza de era/é sempre cedo de mais: para o Xavier que partiu assim e para eles este confronto tão violento com a morte.
    Se quiserem ver há imagens da homenagem aqui: http://www.youtube.com/watch?v=zpNmxMSbmNE

    Beijos

    ResponderEliminar

Comments are welcome :-)