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terça-feira, 21 de setembro de 2010

Dezassete minutos na vida de uma mulher

Dezassete. Número cabalístico. Número ligado à matriz deste local: dezassete freguesias, dezassete anos a construir o Convento, o biorritmo, seja lá o que isso for, é o dezassete, dezassete degraus para a Basílica, e dezassete coisas mais, tentativas por exemplo de D. João V engravidar a sua real esposa no seu real leito com uma cópula real mas não uma real cópula, outras tantas escapadinhas à Madre Paula em Odivelas e por aí fora. As duas últimas são da minha autoria mas com tanta estorieta, também eu tenho direito à minha. E regressemos aos factos: dezassete freguesias e dezassete locais de poso para a santa da devoção aqui do pedaço, a Nossa Senhora da Nazaré. Ora, a Nossa Senhora da Nazaré funciona como um calendário oculto e mais um motivo para o fado, é que nunca se sabe se da próxima vez cá estamos. Os lamentos surgem sempre e repetidamente, podiam até ser cantados em loas, vila fora, e quando regressa a santa o povo descansa de alívio com os dezassete anos vividos mas choraminga-se, lamuria-se, chora-se e lamenta-se, porque os dezassete vindouros são a incógnita e trarão certamente demónios indomáveis. Há lá coisa melhor? Façamos, portanto tudo por tudo para receber a imagem mínima de mais uma representação da mãe de Cristo. Ele é fatos novos, ele é vestidos novos, chapéus e farpelas, ele é cavalos e charretes, ele é dinheiro gasto a rodos para se ser mordomo, juiz e outras hierarquias socialmente relevantes para os festejos, que se dane o povo com fome se se pode passear ufano e imponente pelas ruas da vila nos cortejos da santa.
E como Portugal não deixa de ser Portugal lá porque a Senhora da Nazaré visita a freguesia, houve um quid pro quo, uma alteração no percurso da procissão que, para minha imensa aflição, se lembrou de passar à porta da senhora minha mãe, rapariga pouco dada a sacristias mas crente em coisas que não creio. E manda a tradição que se ponha uma colcha à janela ou duas ou três ou quatro. Assim sendo, houve que cortar caminho do centro da vila até casa da minha mãe, apressar o passo, espreitar se lá vinha o cortejo, apurar o ouvido para cornetas e bombos, e subir rapidamente para salvar a honra da senhora minha mãe, ausente em parte certa, a gozar o prazer de ter um livro para ler e não o fazer. A colcha. Era a colcha. Faltava a colcha. Ora, fiz contas E onde é que ela guarda as colchas? O tempo urgia, a procissão de beatos, tementes, crentes e curiosos aproximava-se e eu, impotente e desolada com a incapacidade de salvar a janela da nudez absoluta e a honra da minha progenitora que o povo leva isto a sério e lá se ia a reputação, quem sabe lhe lançariam uma fatwa. E que colcha? Que colcha mais? A da cama, já se vê. Pega de um lado, pega do outro, janela aberta e pronto, já está. Ei-la engalanada para a ocasião solene. É que daqui a dezassete anos não sei se os bicos de papagaio, as cruzes, o bucho virado e outras enfermidades me permitirão a veleidade de acarretar com a colcha.

7 comentários:

  1. Adorei ler!

    Na verdade, já me apanhei a fazer contas à vida agora que falta um ano para a dita visitar a minha freguesia...

    Que andava eu a fazer há 17 anos? Dizia-me o meu pai que quando a festa voltasse teria 30 anos, e estaria "talvez casada e com uma carrada de filhos!".

    Catolicisses à parte, é uma tradição bem curiosa!

    beijoka

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  2. E eles cantavam (gritavam, dirão alguns).... Sra da Nazaré...

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  3. Vês como tenho razão, Sónia? A Sra. da Nazaré é mais certa que o calendário maia :))))
    Sim, a tradição é engraçada.
    Beijocas

    Cantavam? Só ouvi as loas :)

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  4. Adorei ler-te.
    Uma delícia.
    :))

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  5. Dezassete palmas à autora do texto... só para que não se perca a tradição. (Logo eu que não ligo a mínima a tradições). :-)

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  6. Obrigada, Loca.
    Estes episódios inspiram-me sempre :)))

    Obrigada, Mike, pelas dezassete palmas, é que não se sabe quando escreverei outro texto a merecer mais dezassete :)

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  7. Daqui por um ano estou certo que merecerá 18. :-)

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