Solidariedade, palavra usada e abusada nos dias que correm e que a espaços me provoca indizível repulsa pela hipocrisia subliminar, a ajuda que é mais uma afirmação da superioridade de quem dá sobre quem recebe do que o ombro desinteressado que se disponibiliza sem nada, absolutamente nada, coisíssima nenhuma em troca. E depois há aquele texto do António Lobo Antunes, uma crónica das antigas que se me agarrou desde que a li e que regressa em força, tal como as canções que descrevi uns posts abaixo, sempre que me vêm com balelas e afirmações serôdias de um cristianismo oculto no dia-a-dia mas presente nestes preciosos momentos: “Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida”. Em tempo de aperto, como o do presente, é sabido que fazer bem faz muito bem, e constitui não raras vezes a panaceia perfeita para a consciência pesada da abastança caduca do consumismo. Acontece que dentro de mim vive uma adolescente que rejeita liminarmente afirmações desmesuradas de hipocrisia e que odeia de alardear o bem, se algum, que faz, portanto quando viu movimentações lá na sua escola azul-cueca e uma pressão miudinha para que contribuísse para um desses movimentos solidários com um bolo ou algo que o valesse, meteu-se em copas, recusou-se a escrever o seu nome na lista que consta na sala de professores e continuou surfando aula a aula. Acontece também que essa mesma que aqui e agora escreve tem recaídas desses repentes furiosos e em casa, longe dos olhares comiserados de bem-fazer aos pobrezinhos e uma vez a sós com os seus botões, deu-lhe um rebate de consciência, afinal o que custa fazer um bolo se a causa é justa, as bafientas que vão dar uma volta. Assim sendo, deitou mãos à obra: ovos bem batidos com o açúcar, farinha e iogurte, uma colher pequena de canela e, como gosta de inventar, sumo e raspa da laranja que estava ali mesmo à mão. Dia seguinte faz-se à estrada de bolo na mão, enfrenta as curvas sinuosas cuidando daquela deliciosa rodela perfumada a canela e laranja e, uma vez chegada, vê entrar ao longe uma outra colega. Rumo ao bulício das manhãs repletas de surpresas da vida adolescente, abalançava-se escola adentro de cabelos ao vento, sorriso aberto e mãos a abanar, não que me diga respeito a solidariedade alheia, contudo, sei que jamais deixaria de passar uma oportunidade sem contribuir para a causa genuinamente. E atenta no povo que passa. Nas mãos livros e mochilas. E revê mentalmente a lista na sala de professores. A data. Procura a data neste emaranhado de tarefas e obrigações a cumprir. Dia 12 ou 19? 12? 19?A dúvida que se instala e a certeza que a invade. E um bolo que foi passear-se numa bela manhã de Maio. Dia 19, portanto.
Eu também há solidariedades que valha-me Deus de tão bacocas: é como os VIPs que pelo Natal alardeiam o bem que fazem para revista ver.
ResponderEliminarIsso mesmo. Quem é solidário não precisa de o alardear. Faz em vez de anunciar.
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