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sexta-feira, 27 de maio de 2011

O escuro pois

Vinha sonolenta, o corpo ainda lento em movimentos diluídos na arrumação de livros e cadernos na secretária, os olhos semi-cerrados e soltou um lamento assim que finalmente tudo se arrumou, Hoje dormi mal. Sonhei muito. Eu sonho sempre muito. Revi-me naquela afirmação e revisitei a adolescente sempre sonolenta para quem os Invernos longos eram um verdadeiro tormento, as noites uma travessia de territórios incertos sempre ameaçados por criaturas e acontecimentos inusitados e para quem as manhãs se estendiam num fastidioso e eterno momento de cansaço e tédio absoluto. E continuou com a pergunta pronta, Stora, os adultos também sonham? Sim, claro, respondi. A idade adulta não trouxe grandes alterações à adolescente dos sonhos perdidos, das noites inquietas, do cansaço matinal. A diferença entre um adolescente e um adulto opera-se na gestão que se faz das inquietações e dos demónios que nos vão surgindo no caminho. Mas aquela não seria afinal a única pergunta sobre o mundo insondável dos adultos e do qual, vou constatando em conversas múltiplas, os adolescentes têm medo, um medo incompreensível de não conseguir e de não ser capaz. Quem olhará por eles, afinal, nesse labirinto de ainda maiores incertezas. Algures quase no fim da aula, a outra pergunta E os adultos também têm medos, stora? Ao contrário do que fizera umas aulas antes, não exemplifiquei. Escondi-lhe que o meu pai me mandara uma vez pela escuridão do quintal para me fazer sentir aquilo em que ele sempre acreditou e que me afirmava enquanto eu progredia passo a passo na escuridão daquele enorme território para uma criança de tenra idade Vês, Nonô, o medo não existe. Escondi-lhe que o meu pai tão eficaz na desinibição daquele medo, não me ensinara, contudo, a lidar com a ausência, esta que me vai corroendo a espaços. Fiquei-me apenas pela confirmação. Sim, é claro que têm medos. Poupei-a aos meus medos, ao medo incontrolável de perder quem amo, o medo de ficar inane e tolinho de sorriso pendurado sem capacidade de decisão sobre o meu próprio destino e este mesmo corpo. Ela acrescentou Pois, Stora, há adultos que têm medo do escuro. Saímos uns minutos depois. Ao passar por mim, na porta da sala, deu-me um inesperado beijo na testa e afirmou o mais belo carinho pela professora forte e valente, a destemida cujos medos se não revelam. Chamemos-lhe escuro, então.

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