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segunda-feira, 23 de maio de 2011

Por uma mãe

Há coisas que só se fazem pelas mães. Uma delas foi ter ido a Pádua ver as relíquias do Santo António, línguas e outros pedaços que me deixaram à beira do vómito. Há necessidade? Há necessidade alguma que se arranquem pedaços aos mortos para os expor? Não, não há, mas devota do Santo António e uma vez em Itália pela primeira vez, Veneza mais propriamente, havia que fazer escolhas para um dia ausente de programa e guardado criteriosamente para aquele lugar mágico, aquele que nos deixa uma chama miudinha e uma excitação quase infantil. Nesse longínquo início dos anos 90, quando viajar ainda não era apenas ir já ali, a escolha era quase a de uma vida, sabe-se lá se cá voltamos, e entre Verona e a varanda da Julieta que, como se sabe, é apenas mito que nos preenche o imaginário cheio de Romeus, Hamlets e outros chatos que arrumei no armário logo após a faculdade, e Pádua, Pádua falou mais forte e aventurei-me com a minha mãe para lhe proporcionar esse prazer e esse gosto num dia gélido de Fevereiro. Saí de lá com um bênção nos queixos, paga a um frade que cumpria na perfeição o estereótipo nada ascético no que respeita a hábitos alimentares e uma experiência única em que quase me raptavam a mãe em plena missa para ir pôr a mão a um túmulo sagrado, percebi depois. A contenda foi vigorosa e enquanto eu agarrava a mão à minha mãe e lhe dizia Mas onde é que tu vais no meio da missa, do outro lado uma italiana insistia em levá-la. Filha que é filha não larga a sua mãe na mão de estranhos, num país estranho e num lugar onde há pedaços de pessoas em redomas de vidro. Um alívio quando saí mas um enorme prazer por ter a ajudado a minha mãe a cumprir um desejo.
A outra coisa que fiz pela minha mãe é recente, tem cerca de mês e mete mais uma vez gente perecida ou quase. Chegados a um dia de semana depressa percebemos que não, que apesar de nada constar nos guias de viagem, o túmulo não estava aberto. As opiniões divergiam: o guia do tour pela cidade dizia que estaria fechado durante aqueles dias, o do tour do Kremlin que estaria fechado às quintas-feiras. Enquanto isso, pensava com os meus botões que não tinha ido a Moscovo para ver mortos, pobre do Vladimir. Três dias depois continuava fechado e no último dia, o ultiminho em que reservámos a manhã para contemplar por uma última vez a Praça Vermelha, eis que observámos uma fila ainda tímida que se ia formando no extremo da Praça, do outro lado das portas que Stalin mandou destruir para melhor passarem tanques nas paradas comemorativas do poderio soviético. E pronto, uma filha não abandona a mãe nas mãos daqueles russos, brutos, ai brutos como nunca se viu, e foi aí que o vi. Iluminado no meio de uma sala estava o boneco de cera mais famoso da História, Vladimir Ilitch Lenin, Владимир Ильич Ленин, em cirílico. Ainda a salvei quando em pelo mausoléu se lembrou de ir à caixa dos óculos para observar o dito cujo e levantou suspeitas nos marciais guardiãos.
E o que é não se faz por uma mãe?

Para a minha mãe que comemorou ontem mais um sorridente aniversário.  

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