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quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

O pêndulo do sonho

Viajar pode ser apenas a deslocação de um ponto ao outro, a interrupção desejada da rotina do quotidiano, conhecer um destino fora de portas, confirmar aquilo que se julga saber, carecendo, não obstante, de ratificação, preencher uma lista de lugares e monumentos visitados, uma forma de ascensão social, de gabarolice inevitável ou a busca da felicidade como diz Alain de Botton em A Arte de viajar: “Se as nossas vidas são dominadas pela busca da felicidade, talvez poucas actividades sejam tão elucidativas no que à dinâmica dessa busca – com todo o seu ardor e paradoxos – se refere como as nossas viagens.”
A ideia começou a maturar não sei exactamente quando, embora admita que, com a idade a avançar e os dias jovens para trás, a saturação de uma profissão desgastante, socialmente desprestigiante e desprestigiada, e a necessidade de dias tranquilos sem confusões supérfluas criadas em gabinetes com fins estatísticos muito precisos e minuciosos agravou a necessidade de bater a porta do ensino e sentir fluir os dias entre momentos de plenitude e calmaria sem acusações ou julgamentos em praça pública.
A ideia surgiu de forma mais visual quando um dia em Viena, ao dobrar inesperadamente uma esquina, dei por mim a espreitar pelas vitrinas fechadas o conteúdo duplamente saboroso, os livros criteriosamente empilhados e arrumados, postais e marcadores de livros alusivos à temática dominante do espaço luminoso, o contraste curioso à cidade dos imperadores bisonhos e vienenses carrancudos, e ao canto, uma zona onde se podia tomar café ou chá, imagino que café dada a grande tradição vienense. E ao estatelar o nariz na montra conseguia sentir os aromas vários que se soltavam, o perfume dos livros enleado com a fragrância do café acabado de tirar, a sugestão onírica e sinestésica que o espaço libertava combinado com a localização estratégica, a esquina, com luz de ambos os lados. E fui acalentando o sonho: as manhãs luminosas, os bons-dias à vizinhança que passava em passo estugado a caminho das vidas atribuladas, abrir a porta e esperar que aparecessem, um, dois, três bibliófilos dedicados à procura da última novidade ou de uma edição antiga, talvez a tivesse guardado carinhosamente para estes dias de magia, algures entre livros e dias amenos.
E a mesma ideia regressou com força, quando numa manhã cinzenta calcorreada pela capital londrina, aterrei inadvertidamente à porta da livraria ainda por abrir. Oito horas e cinquenta e oito minutos no meu relógio de viajante, dois minutos, pois, dois minutos me afastavam do momento em que a confirmação do sonho em gestação se me apresentava sem possibilidade de recusa, a verdade que se desvelava e revelava à minha frente. Um homem à porta apenas, confirmou as horas para se dirigir à montra e depois as portas que se abrem, um sorriso consentâneo, e ao contrário do espaço vienense, estantes vetustas que se erguem até ao tecto, escuras e austeras na medida do desejável, o chão fofo da alcatifa e os empregados discretos e eficientes, sem a conversa do dia-a-dia audível a todos os presentes ou salamaleques balofos. E a revelação ali estava: dias, meses, anos em torno dos livros, com escrita pelo meio e périplos infinitos para regressar renovada a um espaço de recato e religiosidade com toda a liberdade da escrita e da leitura. Poderia acabar os dias assim.
Viajar pode ser apenas a deslocação de um ponto ao outro. Será sempre contudo, um espaço de descoberta e de revelação, o movimento pendular entre a realidade e o sonho e a libertação e a felicidade de pensarmos que ainda podemos ser outros.



Fui repescar este texto a propósito da conversa nesta caixa de comentários. O sonho de passar os dias entre livros persiste e pelo sonho é que vamos.

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