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sábado, 15 de outubro de 2005

Tanta fartura e tanta falta

"Sempre conheci esta menina assim. Tem uma fartura de cabelo!" Virei-me. Reconheci uma cara algo familiar mas cujo nome desconheço. Sorri, meio encabulada e à guisa de justificação alinhavei "Hoje saí de casa a correr, nem tive tempo de lhe pôr qualquer coisa para o amansar..." A minha mãe sorriu. A senhora continuou “mas é verdade, que cabelo e que fartura… e foi sempre assim”, rematou com um ou outro comentário elogioso e aos sorrisos cordiais abandonámos a loja. Não lhe mentira. Ao sair de casa depois de concluídas as inúmeras tarefas domésticas apenas tivera tempo para dar uma penteadela fugaz ao cabelo, o que regra geral me torna algo semelhante ao Struwwelpeter, personagem dos contos infantis alemães, mas em versão morena, feminina e de unhas rentes.
A senhora sempre me conheceu desta forma mas nem sempre tive esta fartura. Conta a minha mãe que embora ao nascer a tenha logo brindado com uma cabeleira preta e um remoinho no meio da testa, o meu cabelo nem sempre foi volumoso e rebelde. A minha avó paterna, a brasileira, sempre dizia, que o meu cabelo iria transformar-se na mudança de idade. A minha mãe mostrava-se céptica. Quando na mudança da infância para a adolescência a cabeleira se foi tornando cada vez mais desobediente e revolta, provou-se que a tese da minha avó estava certa. Isso aprendera-o com o meu pai, seu filho, que ao que parece também nascera menos cabeludo e que ao atingir a adolescência o cabelo se lhe tomou de humores e se metamorfoseou num cabelo forte, volumoso e ondulado, tal como se pode atestar ao longo da vida. Contava ela que era pelo cabelo que o distinguia e identificava por entre a multidão ou nas procissões.
Nos últimos meses, o meu pai viu-se impossibilitado de ir ao barbeiro. Urgia uma cortadela da melena, não obstante. O meu pai não estava a ficar parecido com o Struwwelpeter, como eu ontem. Assemelhava-se vertiginosamente a Einstein. O H. brincava "Deixe-me que lhe diga mas tem uma trunfa gloriosa!" Ele sorria orgulhoso. Seremos sempre felizes num presente que não permita antever o futuro.
O meu pai assentiu que eu lhe desse uma aparadela na sua gloriosa trunfa. Colaborou, paciente. Apreciou os momentos de cumplicidade e saboreou a dedicação redobrada. Eu e ele, entre toalhas e penteadores, borrifadores e champôs, tesouras e pentes “Papá, vira agora a cabeça para ali. Isso!” Só mais um bocadinho…” e ele carinhoso e obediente “Está bem assim? Vê lá aqui deste lado” e eu “Só falta um bocadinho, Papá” e ele “Está bem, filhota” e eu “Tenho a impressão que ficou uma bocadinho mais comprido deste lado…” e ele “Hmm, não acho” e eu “Pronto, acho que já está bem. Não sei se ficou bem, mas olha para próxima fica melhor” e ele “Deixa estar, queridinha.” No fim trazia-lhe um espelho para que se visse e visse se se achava bem. Sim, achava-se bem e sentia-se melhor. Que fartura de cabelo e que falta de ti, papá.

3 comentários:

  1. Estás-nos sempre a brindar com posts lindos e histórias antigas (ou nem tanto neste caso!). Obrigada!
    Quanto ao teu cabelo, é sem dúvida uma das características que mais te marca, de tal modo que todas as quartas-feiras me lembro de ti, quando entro no ginásio e há uma rapariga que além de parecida contigo, tem o teu cabelo...tens uma sósia australiana;))

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  2. Deixaste-me sem jeito, Patrícia! É bom saber que te lembras de mim down under. Mil beijinhos e um xi apertadinho :))

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  3. Eu acho que tens um cabelo lindo! :)
    E um jeito para escrever imenso, que nos faz sentir o mesmo que tu...

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